Viver diante de Deus e diante dos homens

Aqui nos encontramos, consummati in unum!, em unidade de petição e de intenções, dispostos a começar este tempo de conversa com o Senhor, com o desejo renovado de sermos instrumentos eficazes nas suas mãos. Diante de Jesus Sacramentado - quanto gosto de fazer um ato de fé explícita na presença real do Senhor na Eucaristia! -, fomentai em vossos corações a ânsia de transmitir com a vossa oração um impulso cheio de fortaleza que chegue a todos os lugares da terra, até o último recanto do planeta onde haja um homem que gaste generosamente a sua existência a serviço de Deus e das almas. Porque, graças à inefável realidade da Comunhão dos Santos, somos solidários - cooperadores, diz São João - na tarefa de difundir a verdade e a paz do Senhor. É lógico que pensemos no nosso modo de imitar o Mestre; que nos detenhamos, que reflitamos, para aprendermos diretamente da vida do Senhor algumas das virtudes que hão de resplandecer na nossa conduta, se deveras aspiramos a dilatar o reinado de Cristo.

Na passagem do Evangelho de São Mateus que a Missa de hoje nos propõe, lemos estas palavras: Tunc abeuntes pharisaei, consilium inierunt ut caperent eum in sermone; os fariseus reuniram-se para tratar entre si de como surpreender Jesus naquilo que falasse.

Não esqueçamos que esse sistema dos hipócritas é uma tática igualmente comum nestes tempos. Penso que a erva daninha dos fariseus jamais se extinguirá no mundo: sempre teve uma fecundidade prodigiosa. Talvez o Senhor tolere que cresça para nos tornar prudentes a nós, seus filhos, já que a virtude da prudência é imprescindível a qualquer um que se encontre na situação de ter de dar critério, de fortalecer, de corrigir, de inflamar, de encorajar. E é precisamente assim, como apóstolo, servindo-se das circunstâncias dos seus afazeres habituais, que um cristão deve agir em relação aos que o rodeiam.

Levanto neste momento o coração a Deus e peço, por mediação da Virgem Santíssima - que está na Igreja, mas acima da Igreja: entre Cristo e a Igreja, para proteger, para reinar, para ser Mãe dos homens, como o é de Jesus Nosso Senhor -, peço a Deus que nos conceda a todos essa prudência, e especialmente aos que, como nós, metidos na corrente circulatória da sociedade, desejam trabalhar por Ele. Verdadeiramente, convém-nos aprender a ser prudentes.

Continua a cena evangélica: E enviaram os seus discípulos - dos fariseus - juntamente com alguns herodianos, os quais lhe disseram: Mestre. Vede com que espírito retorcido o chamam Mestre; fingem-se seus admiradores e amigos, dispensam-lhe um tratamento que se reserva à autoridade de quem se espera receber um ensinamento. Magister, scimus quia verax es, sabemos que és veraz… Que astúcia tão infame! Já vistes maior duplicidade? Andai por este mundo com cuidado. Não sejais cautelosos, desconfiados; mas deveis sentir sobre os ombros - lembrando-vos da imagem do Bom Pastor que se vê nas catacumbas - o peso dessa ovelha que não é uma alma só, mas a Igreja inteira, a humanidade inteira.

Aceitando com garbo esta responsabilidade, sereis audazes e sereis prudentes para defender e proclamar os direitos de Deus. E então, pela integridade do vosso comportamento, haverá muitos que vos considerarão e vos chamarão mestres, sem vós o pretenderdes, já que não andamos à busca da glória terrena. Mas não vos admireis se, entre tantos que se aproximam de vós, se insinuam esses que só pretendem adular-vos. Gravai nas vossas almas o que me ouvistes repetir tantas vezes: nem as calúnias, nem as murmurações, nem os respeitos humanos, nem o que dirão, e muito menos os louvores hipócritas hão de impedir-nos jamais de cumprir o nosso dever.

Lembrai-vos da parábola do bom samaritano. Aquele homem ficou caído no caminho, ferido pelos ladrões, que lhe roubaram até o último centavo. Passa por esse lugar um sacerdote da Antiga Lei e, pouco depois, um levita; os dois continuam em frente sem se preocuparem. Passou a seguir um viandante samaritano que chegou perto dele e, vendo o que acontecia, moveu-se de compaixão. Aproximando-se, ligou-lhe as feridas, depois de as ter limpado com óleo e vinho; e, pondo-o sobre o seu jumento, levou-o a uma estalagem e cuidou dele em tudo. Reparemos que não se trata de um exemplo que o Senhor expõe apenas a poucas almas seletas, porque acrescenta imediatamente àquele que lhe fizera a pergunta, a cada um de nós: Vai e faze tu o mesmo.

Portanto, quando na nossa vida pessoal ou na dos outros percebermos alguma coisa que não está certa, alguma coisa que precisa do auxílio espiritual e humano que nós, os filhos de Deus, podemos e devemos prestar, uma das manifestações claras de prudência consistirá em aplicar o remédio conveniente, a fundo, com caridade e com fortaleza, com sinceridade. Não têm cabimento as inibições. É errado pensar que os problemas se resolvem com omissões ou com adiamentos.

A prudência exige que, sempre que a situação o requeira, se apliquem os remédios, totalmente e sem paliativos, depois de se deixar a chaga a descoberto. Ao notardes os menores sintomas do mal, sede simples, verazes, quer tenhais de curar alguém, quer se trate de receberdes vós mesmos essa assistência. Nesses casos, deve-se permitir, a quem se encontra em condições de curar em nome de Deus, que aperte de longe e depois mais de perto, e mais ainda, até que saia todo o pus e o foco de infecção fique bem limpo. Temos de proceder assim, antes de mais nada, conosco próprios e com os que temos obrigação de ajudar por justiça ou por caridade. Rezo especialmente pelos pais e pelos que se dedicam a tarefas de formação e ensino.

Que nenhuma razão hipócrita vos detenha: aplicai o remédio nítido e certo. Mas procedei com mão maternal, com a delicadeza infinita com que as nossas mães nos curavam as feridas grandes ou pequenas dos nossos jogos e tropeções infantis. Quando é preciso esperar umas horas, espera-se; nunca mais do que o imprescindível, já que outra atitude encerraria comodismo, covardia, que são coisas bem diferentes da prudência. Todos nós - e principalmente os que se encarregam de formar os outros - devemos repelir o medo de desinfetar a ferida.

É possível que um ou outro sussurre arteiramente ao ouvido dos que devem curar, e não se decidem ou não querem enfrentar a sua missão: Mestre, sabemos que és veraz… Não toleremos o elogio irônico. Os que não se esforçam por levar a cabo com diligência a sua tarefa, nem são mestres, porque não ensinam o caminho autêntico, nem são verdadeiros, porque com a sua falsa prudência tomam por exagero ou desprezam as normas claras - mil vezes comprovadas pela reta conduta, pela idade, pela ciência do bom governo, pelo conhecimento da fraqueza humana e pelo amor a cada ovelha - que impelem a falar, a intervir, a demonstrar interesse.

Aos falsos mestres, domina-os o medo de apurar a verdade; desassossega-os a simples idéia - a obrigação - de recorrer ao antídoto doloroso em determinadas circunstâncias. Numa atitude desse gênero - convencei-vos disso -, não há prudência, nem piedade, nem sensatez; essa posição denota apoucamento, falta de responsabilidade, insensatez, estupidez. São os mesmos que depois, presas do pânico à vista do desastre, pretendem atalhar o mal quando já é tarde. Não se lembram de que a virtude da prudência exige que se receba e se transmita a tempo o conselho sereno da maturidade, da experiência antiga, do olhar límpido, da língua sem liames.

Continuemos com o relato de São Mateus: Sabemos que és veraz e que ensinas o caminho de Deus segundo a verdade. Nunca acabo de me surpreender com esse cinismo. Vêm com a intenção de retorcer as palavras de Jesus Nosso Senhor, de apanhá-lo em algum deslize, e, em vez de exporem singelamente o que eles consideram um nó insolúvel, tentam aturdir o Mestre com louvores que só deviam sair de lábios afeiçoados, de corações retos. Detenho-me propositadamente nestes matizes, para que aprendamos a não ser homens receosos, mas sim prudentes, para que não aceitemos a fraude do fingimento, ainda que nos apareça revestido de frases ou gestos que em si mesmos correspondem à realidade, como acontece na passagem que estamos contemplando: Tu não fazes distinções, dizem-lhe; Tu vieste para todos os homens; nada te detém na missão de proclamar a verdade e ensinar o bem.

Repito: prudentes, sim; desconfiados, não. Concedei a mais absoluta confiança a todos, sede muito nobres. Para mim, vale mais a palavra de um cristão, de um homem leal - confio inteiramente em cada um - que a assinatura autêntica de cem tabeliães unânimes, embora vez por outra me tenham enganado por seguir esse critério. Prefiro expor-me a um abuso de confiança, por parte de um inescrupuloso, a despojar seja quem for do crédito que merece como pessoa e como filho de Deus. Eu vos assevero que nunca me decepcionaram os resultados deste modo de proceder.

Se do Evangelho não tiramos em cada momento conseqüências para a vida de hoje, é porque não o meditamos suficientemente. Muitos dos que me escutam são jovens; outros entraram já na maturidade. Todos queremos produzir bons frutos, porque caso contrário não estaríamos aqui. Esforçamo-nos por impregnar a nossa conduta de espírito de sacrifício, da ânsia de negociar com o talento que o Senhor nos confiou, porque sentimos o zelo divino pelas almas.

Mas não seria a primeira vez que, apesar de tanta boa vontade, algum de vós cairia na cilada dessa mistura - ex pharisaeis et herodianis, de fariseus e herodianos - composta talvez pelos que, de um modo ou de outro, por serem cristãos, deveriam defender os direitos de Deus e, no entanto, aliando-se e confundindo-se com os interesses das forças do mal, cercam insidiosamente outros irmãos na fé.

Sede prudentes e procedei sempre com simplicidade, que é virtude tão própria do bom filho de Deus. Mostrai-vos naturais na vossa linguagem e na vossa atuação. Chegai ao fundo dos problemas; não fiqueis na superfície. Reparai que é preciso contar antecipadamente com o desgosto alheio e com o próprio, se desejamos de verdade cumprir santamente e como homens de bem as nossas obrigações de cristãos.

Não vos oculto que, quando tenho de corrigir ou de adotar uma decisão que causará pena, sofro antes, durante e depois. E não sou um sentimental. Consola-me pensar que só os animais não choram; nós, os homens, os filhos de Deus, choramos. Penso que, em certas situações, também vós tereis que passar um mau bocado se vos esforçais por cumprir fielmente os vossos deveres. Não esqueçais que é mais cômodo - mas é um descaminho - evitar a todo o custo o sofrimento, com a desculpa de não desgostar o próximo. Freqüentemente, esconde-se nessa inibição uma vergonhosa fuga à dor própria, já que normalmente não é agradável fazer uma advertência séria. Meus filhos, lembrai-vos de que o inferno está cheio de bocas fechadas.

Escutam-me agora vários médicos. Perdoai o meu atrevimento se volto a servir-me de um exemplo da medicina; talvez me escape algum disparate, mas a comparação ascética é válida. Para curar uma ferida, primeiro limpa-se bem, também à volta, já de bastante longe. O cirurgião sabe perfeitamente que dói; mas, se omite essa operação, depois doerá mais. Além disso, aplica-se logo o desinfetante; arde - pica, como dizemos na minha terra -, mortifica, mas não há outro jeito senão usá-lo, para que a chaga não se infecte.

Se é óbvio que se devem adotar estas medidas para a saúde corporal, mesmo que se trate de escoriações de pouca importância, reparai se, nas coisas grandes da saúde da alma - nos pontos nevrálgicos da vida de um homem -, não haverá que lavar, lancetar, raspar, desinfetar, sofrer! A prudência exige que intervenhamos desse modo e não fujamos do dever, porque esquivar-nos a ele demonstraria uma falta de consideração e mesmo um atentado grave contra a justiça e contra a fortaleza.

Persuadi-vos de que um cristão, se de verdade pretende conduzir-se retamente diante de Deus e diante dos homens, precisa de todas as virtudes, pelo menos em potência. Padre, perguntar-me-eis: E que faço com as minhas fraquezas? Respondo-vos: Por acaso não cura um médico que esteja doente, ainda que o mal de que sofre seja crônico? Impede-o por acaso a sua doença de prescrever aos seus pacientes a receita adequada? Claro que não. Para curar, basta-lhe possuir a ciência conveniente e pô-la em prática, com o mesmo interesse com que combate a sua própria doença.

Se vos examinardes com valentia, na presença de Deus, encontrar-vos-eis, como eu, diariamente carregados de muitos erros. Quando se luta por tirá-los, com a ajuda divina, esses erros deixam de ter uma importância decisiva e se vencem, ainda que pareça que nunca se consegue desarraigá-los por completo.

Além disso, por cima dessas fraquezas, contribuirás para remediar as grandes deficiências dos outros, sempre que te empenhes em corresponder à graça de Deus. Se te reconheces tão fraco como eles - capaz de todos os erros e de todos os horrores* -, serás mais compreensivo, mais delicado e, ao mesmo tempo, mais exigente, para que todos nós nos decidamos a amar a Deus com o coração inteiro.

Nós, os cristãos, os filhos de Deus, temos que assistir os outros, levando à prática com honradez o que aqueles hipócritas sussurravam avessamente ao Mestre: Não atendes à qualidade das pessoas. Quer dizer, repeliremos por completo a discriminação de pessoas - interessam-nos todas as almas! -, ainda que logicamente tenhamos de começar por ocupar-nos daquelas que, por uma circunstância ou outra - também por motivos aparentemente humanos -, Deus colocou ao nosso lado.

(*) No original: de todos los errores y de todos los horrores, expressão que foneticamente não tem tradução análoga em português (N. do T.).

Et viam Dei in veritate doces, e ensinas o caminho de Deus segundo a verdade. Ensinar, ensinar, ensinar: mostrar os caminhos de Deus segundo a pura verdade. Não deves assustar-te de que vejam os teus defeitos pessoais, os teus e os meus. Eu tenho o prurido de publicá-los, contando a minha luta pessoal, a minha ânsia de retificar o meu comportamento neste ou naquele ponto da minha luta por ser leal ao Senhor. O esforço por desterrar e vencer essas misérias será já um modo de indicar as sendas divinas: primeiro, e apesar dos nossos erros visíveis, com o testemunho da nossa vida; depois, com a doutrina, como Nosso Senhor, que coepit facere et docere, que começou a fazer e a ensinar; começou pelas obras, e só mais tarde é que se pôs a pregar.

Depois de vos confirmar que este sacerdote vos ama muito e que o Pai do Céu vos ama mais, porque é infinitamente bom, infinitamente Pai; depois de vos manifestar que nada vos posso lançar em rosto, considero, sim, que devo ajudar-vos a amar Cristo e a Igreja, o seu rebanho, porque penso que nisto nenhum de vós me vence; rivalizais comigo, mas não me venceis. Quando, na minha pregação ou nas conversas pessoais com cada um, aponto algum erro, não é para fazer sofrer; move-me exclusivamente a preocupação de que amemos mais o Senhor. E, quando vos insisto na necessidade de praticar as virtudes, não perco de vista que também para mim é uma necessidade urgente.

Certa vez, ouvi comentar a um leviano que a experiência dos tropeços serve para voltar a cair cem vezes no mesmo erro. Eu vos digo, no entanto, que uma pessoa prudente aproveita esses reveses para ficar escarmentada, para aprender a praticar o bem, para se renovar na decisão de ser mais santa.

Da experiência dos vossos fracassos e triunfos no serviço de Deus, tirai sempre, com o crescimento no amor, um gosto mais firme por prosseguir no cumprimento dos vossos deveres e direitos de cidadãos cristãos, custe o que custar: sem covardias, sem nos esquivarmos nem à honra nem à responsabilidade, sem nos assustarmos com as reações que se formem ao nosso redor - provenientes talvez de falsos irmãos -, quando nobre e lealmente lutamos por promover a glória de Deus e o bem dos outros.

Portanto, temos que ser prudentes. Para quê? Para sermos justos, para vivermos a caridade, para servirmos eficazmente a Deus e a todas as almas. Com muita razão se chamou à prudência genitrix virtutum, mãe das virtudes, e também auriga virtutum, condutora de todos os hábitos bons.

Lede com atenção a cena evangélica, para aproveitar essas admiráveis lições das virtudes que devem iluminar o nosso modo de agir.

Terminado o preâmbulo hipócrita e adulador, os fariseus e herodianos apresentam o seu problema: Diz-nos, pois, o teu parecer: É lícito dar o tributo a César ou não? Escreve São João Crisóstomo: Notai agora a astúcia desses homens. Não lhe dizem: Explica-nos o que é que é bom, conveniente, lícito, mas dize-nos a tua opinião. Estavam com a obsessão de atraiçoá-lo e torná-lo odioso ao poder político. Porém, Jesus, conhecendo-lhes a malícia, disse: Por que me tentais, hipócritas? Mostrai-me a moeda do tributo. E eles apresentaram-lhe um denário. E Jesus disse-lhes: De quem é esta imagem e inscrição? Eles responderam: De César. Então disse-lhes: Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.

Bem vedes que o dilema é antigo, como clara e inequívoca é a resposta do Mestre. Não há - não pode haver - uma contraposição entre o serviço a Deus e o serviço aos homens; entre o exercício dos deveres e direitos cívicos, e os religiosos; entre o empenho por construir e melhorar a cidade temporal e a convicção de que este mundo por onde passamos é caminho que nos conduz à pátria celeste.

Também aqui se manifesta essa unidade de vida que - não me cansarei de repeti-lo - é uma condição essencial para os que procuram santificar-se no meio das circunstâncias habituais do seu trabalho, das suas relações familiares e sociais. Jesus não admite essa divisão. Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou terá aversão a um e amor ao outro, ou, se se submete ao primeiro, olhará com desdém o segundo. A opção exclusiva que um cristão faz por Deus, quando aceita com plenitude a sua chamada, impele-o a dirigir tudo para o Senhor e, ao mesmo tempo, a dar também ao próximo tudo o que em justiça lhe cabe.

Não é possível escudar-se em razões aparentemente piedosas para espoliar os outros daquilo que lhes pertence: Se alguém disser: Sim, eu amo a Deus, mas odiar o seu irmão, é um mentiroso. Mas também se engana aquele que regateia ao Senhor o amor e a reverência - a adoração - que lhe são devidos como Criador e Pai nosso; e bem assim aquele que se nega a obedecer aos seus mandamentos, com a falsa desculpa de que algum deles se mostra incompatível com o serviço aos homens, pois São João nos adverte claramente: Nisto conhecemos que amamos os filhos de Deus, se amamos a Deus e guardamos os seus mandamentos. Porque o amor de Deus consiste em guardarmos os seus mandamentos; e os seus mandamentos não são custosos.

Talvez ouçamos muitos perorarem e inventarem teorias - em nome da funcionalidade, quando não da caridade! - com o fim de cercearem as manifestações de respeito e de homenagem a Deus. Tudo o que for para honrar o Senhor lhes parece excessivo. Não façais caso deles: continuai o vosso caminho. Essas elucubrações limitam-se a controvérsias que não conduzem a nada, que nada mais fazem senão escandalizar as almas e impedir que se cumpra o preceito de Jesus Cristo, que manda entregar a cada um o que lhe pertence, praticando com delicada integridade a virtude santa da justiça.

Gravemo-lo bem na nossa alma, para que se note na conduta: primeiro, justiça para com Deus. Esta é a pedra de toque da verdadeira fome e sede de justiça, que a distingue da gritaria dos invejosos, dos ressentidos, dos egoístas e cobiçosos… Porque a mais terrível e ingrata das injustiças é a de quem nega ao nosso Criador e Redentor o reconhecimento dos bens abundantes e inefáveis que Ele nos concede. Vós, se de verdade vos esforçais por ser justos, tereis de considerar freqüentemente a vossa dependência de Deus - porque, que tens tu que não hajas recebido? -, para vos encherdes de agradecimento e de desejos de corresponder a um Pai que nos ama até a loucura.

Então avivar-se-á em vós o espírito bom de piedade filial, que vos fará tratar a Deus com ternura de coração. Não vos deixeis enganar quando os hipócritas levantarem em torno de vós a dúvida sobre o direito que Deus tem de vos pedir tanto. Pelo contrário, colocai-vos na presença do Senhor sem condições, dóceis, como o barro nas mãos do oleiro, e confessai-lhe rendidamente: Deus meus et omnia!, Tu és o meu Deus e o meu tudo. E se alguma vez chega o golpe inesperado, a tribulação imerecida por parte dos homens, sabereis cantar com alegria nova: Faça-se, cumpra-se, seja louvada e eternamente e glorificada a justíssima e amabilíssima Vontade de Deus sobre todas as coisas. Amém. Amém.

As circunstâncias do servo da parábola que devia dez mil talentos refletem bem a nossa situação diante de Deus: nós também não contamos com nada para pagar a dívida imensa que contraímos por tantas bondades divinas, e que aumentamos ao ritmo dos nossos pecados pessoais. Ainda que lutemos denodadamente, não conseguiremos devolver com eqüidade o muito que o Senhor nos perdoou. Mas a misericórdia divina supre folgadamente a impotência da justiça humana. Ele, sim, pode dar-se por satisfeito e perdoar-nos a dívida, simplesmente porque é bom e infinita a sua misericórdia.

Como nos lembramos muito bem, a parábola termina com uma segunda parte, que é contraponto da anterior. Aquele servo, a quem acabam de perdoar um cabedal enorme, não se compadece de um companheiro que lhe devia apenas cem denários. É aqui que se põe de manifesto a mesquinhez do seu coração. Falando estritamente, ninguém lhe negaria o direito de exigir o que é seu. No entanto, alguma coisa se revolta dentro de nós e nos sugere que essa atitude intolerante se afasta da verdadeira justiça: não é justo que quem, apenas poucos minutos antes, recebeu um tratamento misericordioso de favor e de compreensão, não demonstre ao menos um pouco de paciência para com o seu devedor. Reparai que a justiça não se manifesta exclusivamente no respeito exato dos direitos e deveres, à semelhança dos problemas aritméticos, que se resolvem fazendo somas e subtrações.

A virtude cristã é mais ambiciosa. Incita-nos a mostrar-nos agradecidos, afáveis, generosos; a comportar-nos como amigos leais e honrados, tanto nos tempos bons como na adversidade; a cumprir as leis e a respeitar as autoridades legítimas; a retificar com alegria, quando percebemos que nos enganamos ao enfrentar uma questão. Sobretudo, se somos justos, ater-nos-emos aos nossos compromissos profissionais, familiares, sociais…, sem espaventos nem pregões, trabalhando com empenho e exercendo os nossos direitos, que são também deveres.

Não acredito na justiça dos folgazões, porque com o seu dolce far niente - como dizem na minha querida Itália - faltam, e às vezes de modo grave, ao mais fundamental dos princípios da eqüidade: o do trabalho. Não devemos esquecer que Deus criou o homem ut operaretur, para que trabalhasse, e os outros - a nossa família e nação, a humanidade inteira - dependem também da eficácia do nosso trabalho. Meus filhos! Que pobre idéia fazem da justiça os que a reduzem a uma simples distribuição de bens materiais!

Desde a minha infância - ou, no dizer da Escritura, desde que tive ouvidos para ouvir -, comecei já a escutar o vozerio da questão social. Não tem nada de mais, porque é um tema antigo, de sempre. Talvez tenha surgido no próprio instante em que os homens se organizaram de algum modo e se tornaram mais visíveis as diferenças de idade, de inteligência, de capacidade de trabalho, de interesses, de personalidade.

Não sei se é irremediável que haja classes sociais. Seja como for, também não é do meu ofício falar dessas matérias, e muito menos aqui, neste oratório, em que nos reunimos para falar de Deus - jamais quereria falar de outro tema na minha vida - e para falar com Deus.

Pensai como preferirdes em tudo o que a Providência deixou à livre e legítima discussão dos homens. Mas a minha condição de sacerdote de Cristo impõe-me a necessidade de subir mais alto e de vos recordar que, em qualquer caso, não podemos deixar nunca de praticar a justiça, com heroísmo se for preciso.

Temos obrigação de defender a liberdade pessoal de todos, sabendo que foi Jesus Cristo quem nos adquiriu essa liberdade; se não agimos assim, com que direito podemos reclamar a nossa? Devemos difundir também a verdade, porque veritas liberabit vos, a verdade nos liberta, ao passo que a ignorância escraviza. Cumpre-nos defender o direito, que todos os homens têm, de viver, de possuir o necessário para desenvolver uma existência digna, de trabalhar e descansar, de escolher o seu estado, de formar um lar, de trazer filhos ao mundo dentro do matrimônio e de poder educá-los, de passar serenamente o tempo da doença ou da velhice, de ter acesso à cultura, de associar-se com os demais cidadãos para atingir fins lícitos, e, em primeiro lugar, de conhecer e amar a Deus com plena liberdade, porque a consciência - se for reta - descobrirá as pegadas do Criador em todas as coisas.

Precisamente por isso, urge repetir - não me meto em política, afirmo a doutrina da Igreja - que o marxismo é incompatível com a fé de Cristo. Existe coisa mais oposta à fé que um sistema que baseia tudo em eliminar da alma a presença amorosa de Deus? Gritai-o com muita força, de modo que se ouça claramente a vossa voz: para praticar a justiça, não precisamos do marxismo para nada. Pelo contrário, esse erro gravíssimo - pelas suas soluções exclusivamente materialistas, que ignoram o Deus da paz - ergue obstáculos no caminho para a felicidade e para o entendimento entre os homens.

Dentro do cristianismo encontramos a boa luz que dá sempre resposta a todos os problemas. Basta que vos empenheis sinceramente em ser católicos, non verbo neque lingua, sed opere et veritate, não com palavras nem com a língua, mas com obras e de verdade. Dizei isso sempre que surgir a ocasião - e procurai-a, se for preciso -, sem reticências, sem medo.

Lede a Escritura Santa. Meditai uma a uma as cenas da vida do Senhor, os seus ensinamentos. Considerai especialmente os conselhos e as advertências com que Ele preparava aquele punhado de homens para serem seus Apóstolos, seus mensageiros, de um ao outro extremo da terra. Qual é a pauta principal que lhes marca? Não é o preceito novo da caridade? Foi pelo amor que eles abriram caminho naquele mundo pagão e corrompido.

Convencei-vos de que só com a justiça não resolvereis nunca os grandes problemas da humanidade. Quando se faz justiça a seco, não vos admireis de que a gente se sinta magoada: pede muito mais a dignidade do homem, que é filho de Deus. A caridade tem que ir dentro e ao lado, porque tudo dulcifica, tudo deifica: Deus é amor. Temos de agir sempre por Amor de Deus, porque torna mais fácil querer bem ao próximo e porque purifica e eleva os amores terrenos.

Para chegarmos da justiça estrita à abundância de caridade, temos todo um trajeto a percorrer. E não são muitos os que perseveram até o fim. Alguns se conformam com aproximar-se dos umbrais: prescindem da justiça e limitam-se a um pouco de beneficência, que qualificam como caridade, sem perceber que isso é apenas uma parte pequena do que estão obrigados a fazer. E mostram-se muito satisfeitos de si mesmos, como o fariseu que pensava ter preenchido a medida da lei porque jejuava dois dias por semana e pagava o dízimo de tudo o que possuía.

A caridade - que é como um generoso exorbitar-se da justiça - exige primeiro o cumprimento do dever. Começa-se pelo que é justo, continua-se pelo que é mais eqüitativo… Mas, para amar, requer-se muita finura, muita delicadeza, muito respeito, muita afabilidade; numa palavra, é preciso seguir o conselho do Apóstolo: Levai uns as cargas dos outros, e assim cumprireis a lei de Cristo. Então, sim, já se vive plenamente a caridade, já se realiza o preceito de Jesus.

Para mim, não existe exemplo mais claro dessa união prática entre a justiça e a caridade que o comportamento das mães. Amam com o mesmo carinho todos os seus filhos, e precisamente esse amor as leva a tratá-los de modo diferente - com uma justiça desigual -, já que cada um é diferente dos outros. Pois bem, também com os nossos semelhantes a caridade aperfeiçoa e completa a justiça, porque nos move a conduzir-nos de maneira desigual com os desiguais, adaptando-nos às suas circunstâncias concretas, para comunicar alegria a quem está triste, ciência a quem não possui formação, afeto a quem se sente só… A justiça determina que se dê a cada um o que é seu, o que não significa dar a todos o mesmo. O igualitarismo utópico é fonte das maiores injustiças.

Para agirmos sempre assim - como essas mães boas -, precisamos esquecer-nos de nós mesmos, não aspirar a nenhum espírito de senhorio que não o de servir os outros, como Jesus Cristo, que pregava: O Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir. Isto requer a inteireza de submeter a vontade própria ao modelo divino, de trabalhar por todos, de lutar pela felicidade eterna e pelo bem-estar dos outros. Não conheço melhor caminho para sermos justos que o de uma vida de entrega e de serviço.

Talvez se possa pensar que sou um ingênuo. Não me importo. Mesmo que me qualifiquem desse modo, por ainda acreditar na caridade, assevero-vos que acreditarei sempre! E enquanto o Senhor me conceder vida, continuarei a ocupar-me - como sacerdote de Cristo - de que haja unidade e paz entre aqueles que, por serem filhos do mesmo Pai-Deus, são irmãos; de que os homens se compreendam; de que todos partilhem do mesmo ideal: o da Fé!

Acudamos a Santa Maria, a Virgem prudente e fiel, e a São José, seu esposo, modelo acabado de homem justo. Eles viveram na presença de Jesus, do Filho de Deus, as virtudes que contemplamos, e por isso nos alcançarão a graça de que elas arraiguem firmemente na nossa alma, para que nos decidamos a comportar-nos em todos os momentos como discípulos bons do Mestre: prudentes, justos, cheios de caridade.

Referências da Sagrada Escritura
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