Desprendimento

Neste umbral da Semana Santa, já tão próximos do momento em que se consumou sobre o Calvário a Redenção da humanidade inteira, parece-me particularmente apropriado que tu e eu consideremos os caminhos pelos quais Jesus Senhor Nosso nos salvou; que contemplemos o seu amor, verdadeiramente inefável, por umas pobres criaturas formadas com barro da terra.

Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris, lembra-te, ó homem, de que és pó e em pó te tornarás, admoestava-nos a nossa Mãe a Igreja, quando se iniciava a Quaresma, para que jamais esquecêssemos que somos muito pouca coisa, que um dia qualquer o nosso corpo - agora tão cheio de vida - se desfará como a ligeira nuvem de poeira que os nossos pés levantam ao andar: dissipar-se-á como névoa acossada pelos raios do sol.

Mas depois de vos recordar tão cruamente a nossa insignificância pessoal, gostaria de enaltecer diante dos vossos olhos outra maravilhosa realidade: a magnificência divina, que nos sustenta e nos endeusa. Escutemos as palavras do Apóstolo: É bem conhecida de vós a liberalidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual, sendo rico, se fez pobre por vós, a fim de que vós fôsseis ricos pela sua pobreza. Reparemos com calma no exemplo do Mestre, e compreenderemos imediatamente que dispomos de tema abundante para meditar durante toda a vida, para concretizar propósitos sinceros de mais generosidade. Porque - e não percais de vista esta meta que temos de alcançar - cada um de nós deve identificar-se com Jesus Cristo, o qual - acabais de ouvi-lo - se fez pobre por ti, por mim, e padeceu, dando-nos exemplo, para que seguíssemos as suas pisadas.

Nunca te chegaste a perguntar, dominado por uma curiosidade santa, de que modo Jesus levou a cabo esse excesso de amor? É São Paulo quem novamente se encarrega de responder-nos: Tendo a natureza de Deus , não obstante aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, tornando-se semelhante aos homens e reduzindo-se à condição de homem. Filhos, enchei-vos de assombro agradecido diante deste mistério, e aprendei: todo o poder, toda a majestade, toda a formosura, toda a harmonia infinita de Deus, as suas grandes e incomensuráveis riquezas, todo um Deus!, ficou escondido na Humanidade de Cristo para nos servir. O Onipotente apresenta-se decidido a obscurecer por algum tempo a sua glória, para facilitar o encontro redentor com as suas criaturas.

Escreve o Evangelista São João: Ninguém jamais viu a Deus; o Filho Unigênito, que está no seio do Pai, ele mesmo é que o deu a conhecer, comparecendo perante o olhar atônito dos homens: primeiro, como um recém-nascido, em Belém; depois, como uma criança igual às outras; mais tarde, no Templo, como um adolescente judicioso e vivaz; e, por fim, naquela figura amável e atraente do Mestre, que fazia vibrar os corações das multidões que o acompanhavam entusiasmadas.

Bastam uns traços do Amor de Deus que se encarna, e logo a sua generosidade nos toca a alma, nos inflama, nos arrasta com suavidade a uma dor contrita pelo nosso comportamento, em tantas ocasiões mesquinho e egoísta. Jesus Cristo não tem inconveniente em rebaixar-se, para nos elevar da miséria à dignidade de filhos de Deus, de irmãos seus. Tu e eu, pelo contrário, com freqüência nos orgulhamos nesciamente dos dons e talentos recebidos, até os convertermos em pedestal para nos impormos aos outros, como se o mérito de umas ações, acabadas com uma perfeição relativa, dependesse exclusivamente de nós: Que tens tu que não hajas recebido de Deus? E, se o recebeste, por que te glorias como se não o tivesses recebido?

Ao considerarmos a entrega de Deus e o seu aniquilamento - digo-o para que o meditemos, pensando cada um em si mesmo -, a vanglória, a presunção do soberbo revela-se como um pecado horrendo, precisamente porque coloca a pessoa no extremo oposto ao do modelo que Jesus Cristo nos apontou com a sua conduta. Pensemo-lo devagar. Ele se humilhou, sendo Deus. O homem, empertigado no seu próprio eu, pretende enaltecer-se a todo o custo, sem reconhecer que está feito de mau barro de moringa.

Não sei se vos terão contado na infância a fábula do camponês a quem ofereceram um faisão dourado. Passado o primeiro momento de alegria e de surpresa pelo presente, o novo dono procurou um lugar onde encerrá-lo. Ao cabo de bastantes horas, após muitas dúvidas e diferentes planos, optou por metê-lo no galinheiro. Admiradas com a beleza do recém-chegado, as galinhas giravam-lhe em redor com o pasmo de quem descobre um semi-deus. No meio de tanto alvoroço, chegou a hora da pitança e, quando o dono lançou os primeiros punhados de farelo, o faisão - famélico pela espera - lançou-se com avidez a tirar a barriga da miséria. Perante um espetáculo tão vulgar - aquele prodígio de beleza comia com as mesmas ânsias do animal mais comum -, as desencantadas companheiras de galinheiro arremeteram a bicadas contra o ídolo caído, até lhe arrancarem as penas todas. Tão triste assim é o desmoronamento do ególatra; tanto mais desastroso quanto mais se tiver empinado sobre as suas próprias forças, presunçosamente confiante na sua capacidade pessoal.

Tirai disto conseqüências práticas para a vossa vida diária, sentindo-vos depositários de uns talentos - sobrenaturais e humanos - que tendes de aproveitar retamente, e rechaçai o ridículo engano de que alguma coisa vos pertence, como se fosse fruto unicamente do vosso esforço. Lembrai-vos de que, nas somas, há uma parcela de que ninguém pode prescindir: Deus.

Com esta perspectiva, convencei-vos de que, se verdadeiramente desejamos seguir de perto o Senhor e prestar um serviço autêntico a Deus e a toda a humanidade, temos que estar seriamente desprendidos de nós mesmos: dos dons da inteligência, da saúde, da honra, das ambições nobres, dos triunfos, dos êxitos.

Refiro-me também - porque até aí deve chegar a tua decisão - a esses anseios límpidos com que procuramos exclusivamente dar toda a glória a Deus e louvá-lo, ajustando a nossa vontade a esta norma clara e precisa: “Senhor, só quero isto ou aquilo se for do teu agrado, porque, senão, para que me interessa?” Assestamos assim um golpe mortal no egoísmo e na vaidade, que serpenteiam por todas as consciências; e ao mesmo tempo alcançamos a verdadeira paz na nossa alma, com um desprendimento que acaba na posse de Deus, cada vez mais íntima e mais intensa.

Para imitarmos Jesus Cristo, temos que ter o coração inteiramente livre de apegos. Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; mas quem perder a sua vida por amor de mim, encontrá-la-á. Porque, de que serve ao homem ganhar o mundo inteiro se vier a perder a sua alma? E comenta São Gregório: Não seria suficiente vivermos desprendidos das coisas se, além disso, não renunciássemos a nós mesmos. Mas… para onde iremos fora de nós mesmos? Ou quem é que vai, se já se deixou a si próprio?

Sabei que uma é a nossa situação enquanto caídos pelo pecado; e outra, enquanto formados por Deus. De um modo fomos criados, e de outro diferente nos encontramos por causa de nós mesmos. Renunciemo-nos naquilo em que nos convertemos pecando, e mantenhamo-nos tal como fomos constituídos pela graça. Desta maneira, se aquele que, tendo sido soberbo, se torna humilde depois de se converter a Cristo, já renunciou a si mesmo; se um luxurioso muda para uma vida continente, também renunciou a si próprio naquilo que antes era; se um avarento deixa de cobiçar e, em vez de se apoderar das coisas alheias, começa a ser generoso com as próprias, certamente se negou a si mesmo.

O Senhor pede corações generosos, com um desprendimento verdadeiro. Chegaremos a consegui-lo se soltarmos com inteireza as amarras ou os fios sutis que nos atam ao nosso eu. Não vos oculto que esta determinação exige uma luta constante, um saltar por cima do entendimento e da vontade, uma renúncia - em poucas palavras - mais árdua que o abandono dos bens materiais mais cobiçados.

Esse desprendimento que o Mestre pregou, e que espera de todos os cristãos, comporta necessariamente algumas manifestações externas. Jesus Cristo coepit facere et docere, começou a fazer e a ensinar: antes de servir-se da palavra, anunciou a sua doutrina com as obras. Vimo-lo nascer num estábulo, na penúria mais absoluta, e dormir os seus primeiros sonos na terra reclinado sobre palhas de uma manjedoura. Depois, durante os anos das suas andanças apostólicas, entre muitos outros exemplos, certamente nos lembramos da sua clara advertência a um dos que se ofereceram para acompanhá-lo como discípulo: As raposas têm covas e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. E não deixemos de contemplar a cena descrita pelo Evangelho em que os Apóstolos, para mitigar a fome, arrancaram pelo caminho, num sábado, umas espigas de trigo.

Pode-se dizer que Nosso Senhor, em face da missão recebida do Pai, vive o dia de hoje, tal e como aconselhava num dos ensinamentos mais sugestivos que saíram da sua boca divina: Não andeis inquietos com o que comereis para alimentar a vossa vida, nem com o que usareis para vestir o vosso corpo.A vida vale mais que o alimento, e o corpo mais que o vestido. Considerai os corvos, que não semeiam, nem ceifam, nem têm despensa, nem celeiro; e no entanto, Deus os sustenta. Quanto mais valeis vós do que eles! Considerai como crescem os lírios: não trabalham nem fiam; e, contudo, digo-vos que nem Salomão, com toda a sua magnificência, se vestia como um deles. Se, pois, a erva, que hoje cresce no campo e amanhã se lança ao fogo, Deus a veste assim, quanto mais não fará convosco, homens de pouquíssima fé?

Se vivêssemos mais confiantes na Providência divina, seguros - com fé enérgica! - desta proteção diária que nunca nos falta, quantas preocupações ou inquietações não pouparíamos! Desapareceriam tantos desassossegos que, na frase de Jesus, são próprios dos pagãos, dos homens mundanos, das pessoas desprovidas de sentido sobrenatural! Quereria, em confidência de amigo, de sacerdote, de pai, trazer-vos à memória em cada circunstância que nós, pela misericórdia de Deus, somos filhos desse Pai Nosso, todo-poderoso, que está nos céus e ao mesmo tempo na intimidade do nosso coração. Quereria gravar a fogo na vossa mente que temos todos os motivos para caminhar com otimismo por esta terra, com a alma bem desprendida dessas coisas que parecem imprescindíveis, já que o vosso Pai sabe muito bem de que coisas necessitais!, e Ele proverá. Acreditai que só assim nos conduziremos como senhores da Criação e evitaremos a triste escravidão em que caem tantos e tantos, por esquecerem a sua condição de filhos de Deus, inquietos com um amanhã ou com um depois que talvez nem sequer cheguem a ver.

Permiti-me uma vez mais que vos manifeste uma pequena parte da minha experiência pessoal. Abro-vos a minha alma, na presença de Deus, total e absolutamente persuadido de que não sou modelo de nada, de que sou um joão-ninguém, um pobre instrumento - surdo e inepto - que o Senhor utilizou para que se comprove com mais evidência que Ele escreve perfeitamente com a perna de uma mesa. Portanto, quando vos falo de mim, não me passa pela cabeça, nem de longe!, o pensamento de que na minha atuação haja um pouco de mérito pessoal; e muito menos pretendo impor-vos o caminho por onde o Senhor me levou, já que pode muito bem acontecer que o Mestre não vos peça as coisas que tanto me ajudaram a trabalhar sem impedimentos nesta Obra de Deus, a que dediquei toda a minha existência.

Assevero-vos - toquei-o com as minhas mãos, contemplei-o com os meus olhos - que, se confiardes na divina Providência, se vos abandonardes em seus braços onipotentes, nunca vos faltarão os meios necessários para servir a Deus, a Igreja Santa, as almas, sem descuidardes nenhum dos vossos deveres. E, além disso, gozareis de uma alegria e de uma paz que mundus dare non potest, que a posse de todos os bens terrenos não pode dar.

Desde os começos do Opus Dei, em 1928, além de que não contava com nenhum recurso humano, nunca manejei pessoalmente nem um centavo; nem mesmo intervim diretamente nas lógicas questões econômicas que surgem quando se realiza qualquer tarefa em que participam criaturas - homens de carne e osso, não anjos -, que necessitam de instrumentos materiais para desenvolverem com eficácia o seu trabalho.

O Opus Dei precisou e penso que precisará sempre - até o fim dos tempos - da colaboração generosa de muitos, para manter as obras apostólicas: por um lado, porque essas atividades nunca são rendosas; por outro, porque, ainda que aumente o número dos que cooperam e o trabalho dos meus filhos, se há amor de Deus, o apostolado se alarga e as necessidades se multiplicam. Por isso, em mais de uma ocasião, fiz rir os meus filhos porque, enquanto os incitava com fortaleza a corresponder fielmente à graça de Deus, os animava a fitar descaradamente o Senhor e a pedir-lhe mais graça… e o dinheiro contante e sonante à vista de que precisávamos urgentemente.

Nos primeiros anos, faltava-nos até o mais indispensável. Atraídos pelo fogo de Deus, juntavam-se em meu redor operários, artesãos, universitários…, que ignoravam os apertos e a indigência em que nos encontrávamos, porque no Opus Dei, com o auxílio do Céu, sempre procuramos trabalhar de maneira que o sacrifício e a oração fossem abundantes e escondidos. Ao rememorar agora aquela época, brota-me do coração uma ação de graças rendida: que segurança havia em nossas almas! Sabíamos que, procurando o reino de Deus e a sua justiça, o resto nos seria concedido por acréscimo. E posso garantir-vos que nenhuma iniciativa apostólica se deixou de levar a cabo por falta de recursos materiais: no momento preciso, de uma forma ou de outra, nosso Pai-Deus, na sua Providência ordinária, proporcionava-nos o necessário, para que víssemos que Ele é sempre bom pagador.

Se quereis agir a toda a hora como senhores de vós mesmos, aconselho-vos a pôr um empenho muito grande em estar desprendidos de tudo, sem medo, sem temores nem receios. Depois, ao atenderdes e ao cumprirdes as obrigações pessoais, familiares…, empregai os meios terrenos honestos com retidão, pensando no serviço a Deus, à Igreja, aos vossos, à vossa tarefa profissional, ao vosso país, à humanidade inteira. Vede que o importante não é a materialidade de possuir isto ou carecer daquilo, mas conduzir-se de acordo com a verdade que a nossa fé cristã nos ensina: os bens criados são apenas meios. Portanto, repeli a miragem de considerá-los como algo definitivo: Não queirais amontoartesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os consomem e onde os ladrões os desenterram e roubam; mas entesourai para vós tesouros no céu, onde nem a ferrugem nem a traça os consomem, e onde os ladrões não os desenterram nem roubam. Porque onde está o teu tesouro, aí está também o teu coração.

Quando alguém centra a sua felicidade exclusivamente nas coisas daqui de baixo - tenho testemunhado verdadeiras tragédias -, perverte o seu uso racional e destrói a ordem sabiamente estabelecida pelo Criador. O coração fica triste e insatisfeito; penetra por caminhos de um eterno descontentamento e acaba escravizado já aqui na terra, convertendo-se em vítima desses mesmos bens que talvez tenha conseguido à custa de esforços e renúncias sem número. Mas, sobretudo, recomendo-vos que não esqueçais nunca que Deus não tem cabida, não habita num coração enlodado num amor sem ordem, tosco, vão. Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou há de odiar um e amar o outro, ou há de afeiçoar-se ao primeiro e desprezar o segundo. Não podeis servir a Deus e às riquezas. Ancoremos, pois, o coração no amor capaz de nos tornar felizes… Ambicionemos os tesouros do céu.

Não te estou levando ao desleixo no cumprimento dos teus deveres ou na exigência dos teus direitos. Pelo contrário, para cada um de nós, normalmente, uma retirada nessa frente equivaleria a desertar covardemente da luta pela santidade a que Deus nos chamou. Por isso, com segura consciência, deves empenhar-te - especialmente no teu trabalho - para que nem a ti nem aos teus falte o conveniente para viverdes com dignidade cristã. Se nalgum momento experimentas na tua carne o peso da indigência, não te entristeças nem te revoltes; mas, insisto, procura mobilizar todos os recursos nobres para vencer essa situação, porque agir de outra maneira seria tentar a Deus.

E, enquanto lutas, lembra-te, além disso, de que omnia in bonum!, tudo - a própria escassez, a pobreza - coopera para o bem dos que amam o Senhor. Acostuma-te, desde já, a enfrentar com alegria as pequenas limitações, o desconforto, o frio, o calor, a privação de alguma coisa que consideras imprescindível, o não poderes descansar como e quando quererias, a fome, a solidão, a ingratidão, a incompreensão, a desonra…

Nós somos homens da rua, cristãos comuns, metidos na corrente circulatória da sociedade, e o Senhor nos quer santos, apostólicos, precisamente no meio do nosso trabalho profissional, quer dizer, santificando-nos nessa tarefa, santificando essa tarefa e ajudando os outros a santificar-se por meio dessa tarefa. Convencei-vos de que é Deus quem vos espera nesse ambiente, com solicitude de Pai, de Amigo; e pensai que através dos vossos afazeres profissionais, realizados com responsabilidade, além de vos sustentardes economicamente, prestais um serviço diretíssimo ao desenvolvimento da sociedade, aliviais também as cargas dos outros e mantendes muitas obras assistenciais - em nível local e universal - em prol dos indivíduos e dos povos menos favorecidos.

Comportando-nos com normalidade - como os nossos iguais - e com sentido sobrenatural, não fazemos mais do que seguir o exemplo de Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem. Reparai que toda a sua vida está cheia de naturalidade. Passa seis lustros oculto, sem chamar a atenção, como outro trabalhador qualquer, e na aldeia é conhecido como o filho do carpinteiro. Ao longo da sua vida pública, também não se percebe nEle nada de estranho ou excêntrico, que destoe. Rodeava-se de amigos, como qualquer dos seus concidadãos, e no seu modo de apresentar-se não se distinguia deles. Tanto assim, que Judas precisa de combinar um sinal para identificá-lo: Aquele a quem eu beijar, é esse. Não havia em Jesus nenhum indício extravagante. Emociona-me esta conduta do nosso Mestre, que passa como outro qualquer por entre os homens.

Seguindo um chamado especial, João Batista vestia-se de pele de camelo e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. O Salvador usava uma túnica de uma só peça, comia e bebia da mesma forma que os outros, alegrava-se com a felicidade alheia, comovia-se com a dor do próximo, não recusava o descanso que as suas amizades lhe ofereciam, e ninguém desconhecia que tinha ganho o seu sustento, durante muitos anos, trabalhando com as suas próprias mãos junto de José, o artesão. É assim que temos que desenvolver-nos no meio deste mundo: como Nosso Senhor. Eu te diria, em poucas palavras, que temos de apresentar-nos de roupa limpa, de corpo limpo e principalmente de alma limpa.

Aliás - por que não notá-lo? -, o Senhor, que prega um desprendimento tão maravilhoso dos bens terrenos, mostra ao mesmo tempo um cuidado admirável em não desperdiçá-los. Depois do milagre da multiplicação dos pães, que tão generosamente saciaram mais de cinco mil homens, ordenou aos seus discípulos: Recolhei os pedaços que sobraram, para que não se percam. Assim o fizeram, e encheram doze cestos. Se meditardes atentamente em toda esta cena, aprendereis a não ser tacanhos nunca, mas bons administradores dos talentos e dos meios materiais que Deus vos concede.

O desprendimento que prego, depois de olhar para o nosso Modelo, é espírito senhoril; não clamorosa e chamativa pobretice, máscara da preguiça e do desleixo. Deves vestir-te de acordo com o tom da tua condição, do teu ambiente, da tua família, do teu trabalho…, como os teus colegas, mas por Deus, com a preocupação de oferecer uma imagem autêntica e atrativa da verdadeira vida cristã. Com naturalidade, sem extravagâncias. Assevero-vos que é melhor que pequeis por excesso que por defeito. Como é que tu imaginas o porte de Nosso Senhor? Não pensaste na dignidade com que vestia aquela túnica inconsútil, tecida provavelmente pelas mãos de Santa Maria? Não te lembras de como se lamenta, na casa de Simão, por não lhe terem oferecido água para se lavar, antes de sentar-se à mesa? Certamente Ele trouxe a lume essa falta de urbanidade para realçar, com esse episódio, o ensinamento de que o amor se manifesta nos detalhes pequenos, mas procura também deixar claro que se atém aos costumes sociais do ambiente. Portanto, tu e eu devemos esforçar-nos por estar desapegados dos bens e dos confortos da terra, mas sem destoar nem fazer coisas estranhas.

Para mim, uma das manifestações de que nos sentimos senhores do mundo, administradores fiéis de Deus, é cuidar das coisas que usamos, com interesse em que se conservem, em que durem, em que brilhem, em que sirvam o maior tempo possível para a sua finalidade, de maneira que não se deitem a perder. Nos Centros do Opus Dei, haveis de encontrar uma decoração simples, acolhedora e sobretudo limpa, porque não se deve confundir uma casa pobre com o mau gosto nem com a sujeira. No entanto, compreendo que tu, de acordo com as tuas possibilidades e com as tuas obrigações sociais, familiares, possuas objetos de valor e cuides deles, com espírito de mortificação, de desprendimento.

Há muitos anos - mais de vinte e cinco -, costumava eu visitar um refeitório de caridade, para mendigos que em cada dia tinham por único alimento a comida que lhes davam. Tratava-se de um local grande, atendido por um grupo de boas senhoras. Certa vez, depois da primeira distribuição, apareceram outros mendigos para ficar com as sobras e, entre os deste segundo grupo, chamou-me a atenção um que era proprietário de uma colher de estanho! Tirava-a do bolso com todo o cuidado, com cobiça, olhava para ela com deleite e, ao acabar de saborear a sua ração, voltava a olhar a colher com uns olhos que gritavam: É minha! Dava-lhe duas lambidelas para limpá-la e guardava-a de novo, todo satisfeito, entre as dobras dos seus andrajos. Efetivamente, era dele! Um pobrezinho miserável que, entre aquela gente, companheira de desventura, se considerava rico.

Conhecia eu por aquela época uma senhora com um título nobiliárquico: era Grande de Espanha. Diante de Deus, isso não conta nada: todos somos iguais, todos filhos de Adão e Eva, criaturas débeis, com virtudes e defeitos, capazes - se o Senhor nos abandona - dos piores crimes. Desde que Cristo nos redimiu, não há diferenças de raça, nem de língua, nem de cor, nem de estirpe, nem de riquezas…: somos todos filhos de Deus. A pessoa de que agora vos falo residia num solar, mas não gastava consigo própria nem quatro tostões por dia. Em contrapartida, retribuía muito bem ao seu serviço, e o resto, destinava-o a ajudar os mendigos, passando ela mesma por privações de todo o gênero. Não faltavam a essa mulher muitos desses bens que tantos ambicionam, mas ela era pessoalmente pobre, muito mortificada, desprendida por completo de tudo. Entendestes-me? Aliás, basta-nos escutar as palavras do Senhor: Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o reino dos céus.

Se tu desejas alcançar este espírito, aconselho-te a ser parco contigo mesmo e muito generoso com os outros. Evita os gastos supérfluos por luxo, por veleidade, por vaidade, por comodismo…; não cries necessidades. Numa palavra, aprende com São Paulo a viver na pobreza e a viver na abundância, a ter fartura e a passar fome, a possuir de mais e a sofrer por necessidade: tudo posso nAquele que me conforta. E, como o Apóstolo, também assim sairemos vencedores da peleja espiritual, se mantivermos o coração desprendido, livre de liames.

Todos os que chegamos à palestra da fé, diz São Gregório Magno, tomamos a peito lutar contra os espíritos malignos. Os demônios nada possuem deste mundo e, por conseqüência, como acorrem nus, nós devemos também lutar nus. Porque se alguém que esteja vestido combate contra outro que está sem roupa, em breve será derrubado, porque o seu inimigo terá por onde agarrá-lo. E que são as coisas da terra senão uma espécie de indumentária?

Dentro deste marco do desprendimento total que o Senhor nos pede, quero indicar-vos outro ponto de particular importância: a saúde. Por ora, a maioria de vós é jovem; atravessa essa fase formidável de plenitude de vida que transborda de energias. Mas o tempo passa, e inexoravelmente começa a notar-se o desgaste físico. Vêm depois as limitações da maturidade e, por último, os achaques da ancianidade. Além disso, qualquer um de nós pode ficar doente em qualquer momento ou sofrer algum transtorno corporal.

Só se aproveitarmos com retidão - cristãmente - as épocas de bem-estar físico, os tempos bons, é que aceitaremos também com alegria sobrenatural os eventos que a gente erradamente considera maus. Sem descer a demasiados pormenores, desejo transmitir-vos a minha experiência pessoal.

Enquanto estamos doentes, podemos ser maçantes: Não me atendem bem, ninguém se preocupa comigo, não cuidam de mim como mereço, ninguém me compreende… O demônio, que anda sempre à espreita, ataca por qualquer flanco; e, na doença, a sua tática consiste em fomentar uma espécie de psicose que afaste de Deus, que azede o ambiente ou que destrua esse tesouro de méritos que, para bem de todas as almas, se alcança quando se assume com otimismo sobrenatural - quando se ama! - a dor. Portanto, se é vontade de Deus que sejamos atingidos pelas farpas da aflição, encarai-o como sinal de que Ele nos considera amadurecidos para nos associar mais estreitamente à sua Cruz redentora.

Requer-se, pois, uma preparação remota, feita cada dia de um santo desapego de si próprio, para que nos disponhamos a carregar com garbo - se o Senhor assim o permite - a doença ou a desventura. Sirvamo-nos desde já das ocasiões normais, de alguma privação, da dor nas suas pequenas manifestações habituais, da mortificação, para pôr em prática as virtudes cristãs.

Temos que ser exigentes conosco na vida cotidiana, para não inventar falsos problemas, necessidades artificiais que, em último termo, procedem da arrogância, do capricho, de um espírito comodista e preguiçoso. Devemos caminhar para Deus a passo rápido, sem bagagem e sem pesos mortos que dificultem a marcha. Precisamente porque o espírito de pobreza não consiste em não ter, mas em estar verdadeiramente desapegado, devemos permanecer atentos para não nos enganarmos com imaginários motivos de força maior. Buscai o suficiente, buscai o que basta. E não queirais mais. O que passa disso é aflição, não alívio; acabrunha, em vez de levantar.

Ao descer a estes conselhos, não me baseio em situações estranhas, anormais ou complicadas. Sei de alguém que, para marcar os livros, usava uns papéis em que escrevia umas jaculatórias que o ajudassem a manter a presença de Deus. E entrou-lhe o desejo de conservar com carinho aquele tesouro, até que percebeu que se estava apegando a uns papeluchos de nada. Que belo modelo de virtude! Não me importaria de vos manifestar todas as minhas misérias, se vos servisse para alguma coisa. Levantei um pouco o véu porque talvez contigo se passe outro tanto: os teus livros, a tua roupa, a tua mesa, os teus… ídolos de quinquilharia.

Em casos como esses, recomendo-vos que consulteis o vosso diretor espiritual, sem ânimo pueril nem escrupuloso. Às vezes, bastará como remédio a pequena mortificação de prescindir do uso de alguma coisa durante uma breve temporada. Ou, noutra ordem, não morre ninguém se um dia renuncias ao meio de transporte que utilizas habitualmente e entregas como esmola a quantia poupada, mesmo que seja muito pouco dinheiro. De qualquer modo, se tens espírito de desprendimento, não deixarás de descobrir contínuas ocasiões, discretas e eficazes, de praticá-lo.

Depois de vos abrir a minha alma, preciso confessar-vos também que tenho um apego a que não quereria renunciar nunca: o de amar-vos de verdade a todos vós. Aprendi-o do melhor Mestre, e gostaria de seguir fidelissimamente o seu exemplo, amando sem limites as almas, a começar pelos que me rodeiam. Não vos comove essa caridade ardente - esse carinho - de Jesus Cristo, que o Evangelista nos revela ao designar um dos discípulos? Quem diligebat Iesus, aquele a quem Jesus amava.

Terminamos com uma consideração que nos oferece o Evangelho da Missa de hoje: Seis dias antes da Páscoa, Jesus foi a Betânia, onde tinha morrido Lázaro, que Jesus ressuscitara. E prepararam-lhe lá uma ceia; e Maria servia, e Lázaro era um dos que estavam à mesa com Ele. Então Maria tomou uma libra de bálsamo feito de nardo puro de grande preço, e derramou-o sobre os pés de Jesus, e enxugou-lhe os pés com os seus cabelos, e a casa toda ficou cheia do perfume do bálsamo. Que prova tão clara de magnanimidade o excesso de Maria! Judas lamenta-se de que se tivesse deitado a perder um perfume que valia - na sua cobiça, fez muito bem os cálculos - pelo menos trezentos denários.

O verdadeiro desprendimento leva-nos a ser muito generosos com Deus e com os nossos irmãos; a mexer-nos, a procurar recursos, a gastar-nos para ajudar os que passam necessidade. Não pode um cristão conformar-se com um trabalho que lhe permita ganhar o suficiente para viver ele e os seus. A sua grandeza de coração arrastá-lo-á a meter ombros para sustentar os outros, por um motivo de caridade, e também por um motivo de justiça, como escrevia São Paulo aos de Roma: A Macedônia e a Acaia tiveram por bem fazer uma coleta para os pobres que existem entre os santos de Jerusalém. Tiveram-no por bem, porque lhes são devedores. Com efeito, se os gentios se tornaram participantes dos bens espirituais dos judeus, devem por sua vez assisti-los com os temporais.

Não sejais mesquinhos nem tacanhos com quem tão generosamente se excedeu conosco, até se entregar totalmente, sem medida. Pensai: quanto vos custa - também economicamente - ser cristãos? Mas sobretudo não esqueçais que Deus ama quem dá com alegria. De resto, Deus é poderoso para cumular-vos de todos os bens, de sorte que, contentes sempre de ter em todas as coisas o suficiente, estejais com folga para praticar todo o tipo de obras boas.

Ao aproximarmo-nos, durante esta Semana Santa, das dores de Jesus Cristo, vamos pedir à Santíssima Virgem que, como Ela, também nós saibamos ponderar e conservar todos estes ensinamentos no nosso coração.

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