Espontaneidade e pluralismo no Povo de Deus

Queríamos começar esta entrevista com um problema que provoca em muitos espíritos as mais diversas interpretações Referimo-nos ao tema "aggiornamento". Como entende, aplicado à vida da Igreja, o verdadeiro sentido desta palavra?

Fidelidade. Para mim, aggiornamento significa sobretudo isto: fidelidade. Um marido, um soldado, um administrador é sempre tanto melhor marido, tanto melhor soldado, tanto melhor administrador, quanto mais fielmente souber corresponder, em cada momento, perante cada nova circunstância da sua vida, aos firmes compromissos de amor e de justiça que um dia assumiu. A fidelidade delicada, operativa e constante — que é difícil, como é difícil qualquer aplicação de princípios à realidade mutável do que é contingente — é por isso a melhor defesa da pessoa contra a velhice de espírito a aridez de coração e a anquilose mental.

O mesmo sucede na vida das instituições, singularissimamente na vida da Igreja, que obedece, não a um precário projeto do homem, mas a um desígnio de Deus. A Redenção, a salvação do mundo, é obra da amorosa e filial fidelidade de Jesus Cristo — e da nossa com Ele — à vontade do Pai celestial que o enviou. Por isso, o aggiornamento da Igreja — agora, como em qualquer outra época — é fundamentalmente isto: uma reafirmação gozosa da fidelidade do Povo de Deus à missão recebida, ao Evangelho.

É claro que essa fidelidade — viva e atual perante cada circunstância da vida dos homens — pode requerer, e de fato tem requerido com freqüência na história duas vezes milenária da Igreja e recentemente no Concílio Vaticano II, oportunos desenvolvimentos doutrinais na exposição das riquezas do Depositum Fidei, assim como convenientes modificações e reformas que aperfeiçoam — no seu elemento humano, perfectível — as estruturas organizativas e os métodos missionários e de apostolado.

Mas seria pelo menos superficial pensar que o aggiornamento consiste primariamente em modificar, ou que toda a modificação aggiorna. Basta pensar que não falta quem, à margem, da doutrina conciliar e contra ela, também desejaria modificações que fariam retroceder em muitos séculos de história — pelo menos até a época feudal — o caminho progressivo do Povo de Deus.

* Em português, atualização. O termo foi utilizado com frequência nos anos do Concílio Vaticano II, para referir-se à conveniência de ter em conta, à hora de renovar a vida da Igreja, as mudanças que ocorrem nas mentalidades e na sociedade.

O Concílio Vaticano II utilizou abundantemente em seus Documentos a expressão "Povo de Deus" para designar a Igreja, e pôs assim de manifesto a responsabilidade comum de todos os cristãos na missão única deste Povo de Deus. Quais as características que, em seu entender, deve ter a "necessária opinião pública na Igreja" — da qual já Pio XII falou —, para refletir essa responsabilidade comum? Como é afetado o fenômeno da "opinião pública na Igreja" pelas peculiares relações de autoridade e obediência que se verificam no seio da comunidade eclesial?

Não concebo que possa haver obediência verdadeiramente cristã, se essa obediência não for voluntária e responsável. Os filhos de Deus não são pedras ou cadáveres: são seres inteligentes e livres e elevados todos à mesma ordem sobrenatural, tal como a pessoa que manda, mas não poderá nunca fazer uso reto da inteligência e da liberdade — para obedecer, da mesma maneira que para opinar — quem carecer de suficiente formação cristã. Por isso, o problema de fundo da "necessária opinião pública na Igreja" é equivalente ao problema da necessária formação doutrinal dos fiéis. É certo que o Espírito Santo distribui a abundância dos seus dons entre os membros do Povo de Deus — que são todos co-responsáveis da missão da igreja — Mas isto não exime ninguém, antes pelo contrário, do dever de adquirir essa adequada formação doutrinal.

Entendo por doutrina o suficiente conhecimento que cada fiel deve ter da missão total da Igreja e da peculiar participação, e conseqüente responsabilidade específica, que corresponde a ele nessa missão única. Este é — como o tem recordado repetidas vezes o Santo Padre — o colossal trabalho de pedagogia que a Igreja deve enfrentar nesta época pós-conciliar. Penso que a solução correta do problema a que aludiu deve ser procurado — como outras esperanças latentes no seio da Igreja — em relação direta com esse trabalho. Não serão, com certeza, as instituições mais ou menos proféticas de alguns carismáticos sem doutrina que poderão assegurar a necessária opinião pública no povo de Deus.

Quanto às formas de expressão dessa opinião pública, não considero que seja um problema de órgãos ou de instituições. Tão adequado pode ser um Conselho pastoral diocesano, como as colunas de um jornal — ainda que não seja oficialmente católico — ou a simples carta pessoal dum fiel a seu Bispo, etc. As possibilidades e as modalidades legítimas em que essa opinião dos fiéis pode se manifestar são muito variadas, e não parece que se possam ou devam espartilhar, criando um novo ente ou instituição. E menos ainda se se tratasse duma instituição que corresse o perigo — tão fácil — de chegar a ser monopolizada ou instrumentalizada por um grupo ou grupinho de católicos oficiais, qualquer que fosse a tendência ou orientação em que essa minoria se inspirasse. Isto poria em perigo o próprio prestígio da Hierarquia e soaria a falso para os restantes membros do Povo de Deus.

O conceito de Povo de Deus, a que antes nos referíamos, exprime o caráter histórico da Igreja, como uma realidade de origem divina que se serve também, em seu caminhar, de elementos mutáveis e perecíveis. De acordo com isso, como se deve realizar hoje a existência sacerdotal na vida dos presbíteros? Que característica da figura do presbítero, descrita no Decreto "Presbyterorum Ordinis", lhe parece oportuno sublinhar nos momentos atuais?

Sublinharia uma característica da existência sacerdotal que não pertence precisamente à categoria dos elementos mutáveis e perecíveis. Refiro-me à união perfeita que se deve verificar — e o Decreto Presbyterorum Ordinis recorda-o repetidas vezes — entre consagração e missão do sacerdote: ou, o que é a mesma coisa, entre vida pessoal de piedade e exercício do sacerdócio ministerial, entre as relações filiais do sacerdote com Deus e suas relações pastorais e fraternas com os homens. Não acredito na eficácia ministerial do sacerdote que não seja homem de oração.

Existe certa inquietação de alguns setores do clero acerca da presença do sacerdote na sociedade, que procura — apoiando-se na doutrina do Concílio (Const. "Lumen gentium", no 31; Decreto "Presbyterorum Ordinis", no 8) — exprime-se através duma atividade profissional do sacerdote na vida civil — "padres operários", etc. Gostaríamos de saber o que pensa sobre este assunto.

Antes de mais, devo dizer que respeito a opinião contrária à que vou expor, embora a considere errada por muitas razões, e que acompanho com meu afeto e com minha oração os que a levam a cabo pessoalmente, com grande zelo apostólico.

Penso que o sacerdócio retamente exercido — sem timidez nem complexos, que são ordinariamente demonstração de imaturidade humana, e sem prepotências clericais, que denotariam pouco sentido sobrenatural —, o ministério próprio do sacerdote assegura por si mesmo, suficientemente, uma legítima, simples e autêntica presença do homem-sacerdote entre os restantes membros da comunidade a que se dirige. Ordinariamente, não é necessário mais para viver em comunhão de vida com o mundo do trabalho, compreender seus problemas e participar da sua sorte. Mas o que, com certeza, poucas vezes será eficaz — porque sua própria falta de autenticidade o condena antecipadamente ao fracasso — é recorrer ao ingênuo passaporte dumas atividades laicais de amador, que podem ofender, por muitas razões, o bom senso dos próprios leigos.

Além disso, o ministério sacerdotal é — sobretudo nestes tempos de tanta escassez de clero — um trabalho terrivelmente absorvente, que não deixa tempo para o duplo emprego. As almas têm tanta necessidade de nós, ainda que muitas o não saibam, que nunca se consegue fazer tudo. Faltam braços, tempo, forças. Costumo por isso dizer aos meus filhos sacerdotes que, se algum deles chegasse a notar que num dia lhe tinha sobrado tempo, poderia estar completamente certo de que nesse dia não tinha vivido bem o seu sacerdócio.

E repare que se trata, no caso destes sacerdotes do Opus Dei, de homens que, antes de receberem as ordens sagradas, tinham normalmente exercido, durante anos, uma atividade profissional na vida civil: são engenheiros-sacerdotes, médicos-sacerdotes, operários-sacerdotes, etc… No entanto, não sei de nenhum que tenha considerado necessário — para tornar-se ouvido e estimado na sociedade civil, entre seus antigos colegas e companheiros — aproximar-se das almas com uma régua de cálculo, um estetoscópio ou um martelo pneumático. É verdade que, uma vez por outra, exercem — de modo compatível com as obrigações do estado clerical — a sua profissão ou ofício, mas nunca por pensarem que isso seja necessário para assegurar uma "presença na sociedade civil"; fazem-no por outros motivos diversos: de caridade social, por exemplo, ou de absoluta necessidade econômica, para porem em andamento uma iniciativa apostólica. Também São Paulo recorreu algumas vezes à sua profissão de fabricante de tendas; mas nunca porque Ananias lhe tivesse dito em Damasco que aprendesse a fabricar tendas para poder assim anunciar devidamente o Evangelho de Cristo aos gentios.

Em resumo, e sem que queira com isso julgar da legitimidade e da retidão de intenção de nenhuma iniciativa apostólica, entendo que o intelectual-sacerdote e o operário-sacerdote, por exemplo, são figuras mais autênticas e mais concordes com a doutrina do Vaticano II do que a figura do sacerdote-operário. Salvo no que significa de trabalho pastoral especializado — que será sempre necessário — a figura típica do padre-operário pertence já ao passado; um passado no qual estava oculta para muitos a potencialidade maravilhosa do apostolado dos leigos.

Às vezes ouve-se criticar sacerdotes que assumem atitudes concretas em problemas de índole temporal e mais especialmente de caráter político. Muitas dessas atitudes costumam ir encaminhadas, o que não sucedia em outras épocas, a favorecer uma maior liberdade, a justiça social, etc. Também é certo que não é própria do sacerdócio ministerial a intervenção ativa nestes terrenos, a não ser em casos excepcionais. Mas, não lhe parece que o sacerdote deve denunciar a injustiça, a falta de liberdade, etc, por não serem cristãs? Como conciliar, concretamente, estas exigências?

O sacerdote deve pregar — porque é parte essencial do seu munus docendi — quais são as virtudes cristãs — todas —, e quais as exigências e manifestações concretas que hão de ter essas virtudes nas diversas circunstâncias da vida dos homens a que ele dirige seu ministério. Como também deve ensinar a respeitar e estimar a dignidade e a liberdade da pessoa humana que Deus criou, e a peculiar dignidade sobrenatural que o cristão recebe com o batismo.

Nenhum sacerdote que cumpra este seu dever ministerial poderá ser acusado — a não ser por ignorância ou má fé — de meter-se em política. Nem sequer se poderá dizer que, ao expor esses ensinamentos, interfere na tarefa apostólica, que corresponde aos leigos, de ordenar cristãmente as estruturas e as atividades temporais.

É manifesta a preocupação de toda a Igreja pelos problemas do chamado Terceiro Mundo, sendo uma das maiores dificuldades a escassez de clero, e especialmente de sacerdotes autóctones. Que pensa a este respeito, e que experiência tem neste terreno?

Penso que, efetivamente, o aumento do clero autóctone é um problema de importância primordial, para garantir o desenvolvimento — e até a permanência — da Igreja em muitas nações, especialmente naquelas que atravessam momentos de nacionalismo virulento.

Quanto à minha experiência pessoal, devo dizer que um dos muitos motivos que tenho de agradecimento ao Senhor é ver com que segura doutrina, visão universal, católica, e ardente espírito de serviço — são sem dúvida melhores do que eu — se formam e chegam ao sacerdócio no Opus Dei centenas de leigos de diversas nações — passam já de sessenta países — onde é problema urgente para a Igreja o desenvolvimento do clero autóctone. Alguns receberam o episcopado nessas mesmas nações, e criaram já florescentes seminários.

Os sacerdotes estão incardinados numa diocese e dependem do Ordinário. Que justificação pode haver para que pertençam a alguma Associação distinta da diocese e inclusive de âmbito universal?

A justificação é clara: o uso legítimo dum direito natural — o de associação — que a Igreja reconhece aos clérigos, como a todos os fiéis. Esta tradição secular (pense-se nas muitas associações que tanto têm favorecido a vida espiritual dos sacerdotes seculares) foi repetidamente reafirmada no ensino e nas disposições dos últimos Romanos Pontífices (Pio XII, João XXIII e Paulo VI) e também recentemente pelo próprio Magistério solene do Concílio Vaticano II (cfr. Decreto Presbyterorum Ordinis, no 8).

É de interesse recordar, a este propósito, que na resposta a um modus em que se pedia que não houvesse senão associações sacerdotais promovidas ou dirigidas pelos Bispos diocesanos, a competente Comissão Conciliar rejeitou essa petição — com a posterior aprovação da Congregação Geral —, apoiando claramente a resposta negativa no direito natural de associação, que também diz respeito aos clérigos: "Não se pode negar aos Presbíteros aquilo que o Concílio — tendo em conta a dignidade humana — declarou adequado aos leigos, como decorrência do direito natural". (Schema Decreti Presbyterorum Ordinis, Typis Polyglottis Vaticano 1965, Pág. 68).

Em virtude desse direito fundamental, os sacerdotes podem livremente fundar associações ou inscrever-se nas já existentes, sempre que se trate de associações que promovam fins retos, adequados à dignidade e exigências do estado clerical. A legitimidade e o âmbito do exercício do direito de associação entre os clérigos seculares compreende-se bem — sem equívocos, reticências ou perigos de anarquia — se tivermos em conta a distinção, que necessariamente existe e se deve respeitar, entre a função ministerial do clérigo e o âmbito privado de sua vida pessoal.

Com efeito, o clérigo, e concretamente o presbítero, incorporado pelo sacramento da Ordem à Ordo Presbyterorum, fica constituído por direito divino como cooperador da Ordem Episcopal. No caso dos sacerdotes diocesanos, esta função ministerial concretiza-se, segundo uma modalidade estabelecida pelo direito eclesiástico, mediante a incardinação — que adscreve o presbítero ao serviço de uma Igreja local, sob a autoridade do respectivo Ordinário — e a missão canônica que lhe confere um ministério determinado dentro da unidade do Presbitério, cuja cabeça é o Bispo. É evidente, portanto, que o presbítero depende do seu Ordinário — através dum vínculo sacramental e jurídico — para tudo o que se refira a: indicação do trabalho pastoral concreto; diretrizes doutrinárias e disciplinares que receba para o exercício desse ministério; justa retribuição econômica necessária; todas as disposições pastorais dadas pelo direito comum relativas aos direitos e obrigações que dimanam do estado clerical.

A par de todas estas necessárias relações de dependência — que concretizam juridicamente a obediência, a unidade e a comunhão pastoral que o presbítero tem de viver delicadamente com o seu próprio Ordinário —, há também legitimamente na vida do presbítero secular um âmbito pessoal de autonomia, de liberdade e de responsabilidade pessoais, no qual o presbítero goza dos mesmos direitos e obrigações que as restantes pessoas da Igreja: fica assim diferenciado tanto da condição jurídica do menor (cfr. cân. 89 do C.I.C.) como da do religioso que — em virtude da própria profissão religiosa — renuncia ao exercício de todos ou alguns desses direitos pessoais.

Por esta razão, o sacerdote secular, dentro dos limites gerais da moral e dos deveres próprios do seu estado, pode dispor e decidir livremente — em forma individual ou associada — em tudo o que se refira à sua vida pessoal, espiritual, cultural, econômica, etc. Cada um é livre para se formar culturalmente de acordo com sua própria preferência ou capacidade. Cada um é livre para manter as relações sociais que desejar e organizar a sua vida como melhor lhe parecer, sempre que cumpra devidamente as obrigações do seu ministério. Cada um é livre para dispor dos seus bens pessoais como julgar mais oportuno em consciência. Com maior razão, cada um é livre para seguir, em sua vida espiritual e ascética e em seus atos de piedade, aquelas moções que o Espírito Santo lhe sugerir, e escolher — entre os muitos meios que a Igreja aconselha ou permite — aqueles que lhe parecerem mais oportunos segundo suas particulares circunstâncias pessoais.

Precisamente, referindo-se a este último ponto, o Concílio Vaticano II — o Santo Padre Paulo VI na sua recente Encíclica Sacerdotalis coelibatus — louvou e recomendou vivamente as associações, tanto diocesanas como interdiocesanas, nacionais ou universais, que — com estatutos reconhecidos pela competente autoridade eclesiástica — fomentam a santificação do sacerdote no exercício do seu próprio ministério. A existência dessas associações, com efeito, de nenhuma maneira representa nem pode representar — já o disse — um detrimento do vínculo de comunhão e de dependência que une todo o presbítero com o seu Bispo, nem da unidade fraterna com todos os restantes membros do Presbitério, nem da eficácia de seu trabalho ao serviço da própria Igreja local.

A missão dos leigos exerce-se, segundo o Concílio, na Igreja e no mundo. Isto, com freqüência, não é entendido retamente, ficando-se num ou noutro destes termos. Como explicaria a função dos leigos na Igreja e a função que devem realizar no mundo?

Não penso de modo algum que devam considerar-se como duas funções diferentes, tendo em conta que a específica participação do leigo na missão da Igreja consiste, precisamente, em santificar ab intra — de maneira imediata e direta as realidades seculares, a ordem temporal, o mundo.

O que acontece é que, além desta função, que lhe é própria e específica, o leigo tem também — como os clérigos e os religiosos — uma série de direitos, deveres e faculdades fundamentais, que correspondem à sua condição jurídica de fiel, e que têm seu lógico âmbito de exercício no interior da sociedade eclesiástica: participação ativa na liturgia da Igreja, faculdade de cooperar diretamente no apostolado próprio da Hierarquia ou de a aconselhar na sua ação pastoral se for chamado a isso, etc.

Não são estas funções — a específica que corresponde ao leigo e a genérica ou comum que lhe corresponde como fiel — duas funções opostas, mas sim sobrepostas; nem há entre elas contradição, mas sim complementaridade. Reparar só na função específica do leigo, esquecendo a sua simultânea condição de fiel, seria tão absurdo como imaginar um ramo verde e florido que não pertencesse a nenhuma árvore. Esquecer-se do que é específico, próprio e peculiar do leigo, ou não compreender suficientemente as características destas atividades apostólicas seculares e o seu valor eclesial, seria como reduzir a frondosa árvore da Igreja à monstruosa condição de puro tronco.

Desde há muitos anos que vem dizendo e escrevendo que a vocação dos leigos consiste em três coisas: "santificar o trabalho, santificar-se no trabalho e santificar os outros com o trabalho". Poderia precisar-nos o que entende por "santificar o trabalho"?

É difícil explicá-lo em poucas palavras, porque nessa expressão se acham implicados conceitos fundamentais da própria teologia da Criação. O que sempre ensinei — desde há quarenta anos — é que todo o trabalho humano honesto, intelectual ou manual, deve ser realizado pelo cristão com a maior perfeição possível: com perfeição humana (competência profissional) e com perfeição cristã (por amor à vontade de Deus e a serviço dos homens). Porque, feito assim, esse trabalho humano, por mais humilde e insignificante que pareça, contribui para a ordenação cristã das realidades temporais — a manifestação de sua dimensão divina — e é assumido e integrado na obra prodigiosa da Criação e da Redenção do mundo: eleva-se assim o trabalho à ordem da graça , santificando-se, converte-se em obra de Deus, operatio Dei, opus Dei.

Ao recordar aos cristãos as palavras maravilhosas do Gênesis — que Deus criou o homem para que trabalhasse —, fixamo-nos no exemplo de Cristo, que passou a quase totalidade da sua vida terrena trabalhando numa aldeia como artesão. Amamos esse trabalho humano que Ele abraçou como condição de vida, cultivou e santificou. Vemos no trabalho — na nobre fadiga criadora dos homens — não só um dos mais altos valores humanos, meio imprescindível para o progresso da sociedade e para o ordenamento cada vez mais justo das relações entre os homens, mas também um sinal do amor de Deus para com as suas criaturas e do amor dos homens entre si e para com Deus: um meio de perfeição, um caminho de santificação.

Por isso, o único objetivo do Opus Dei sempre foi este: contribuir para que no meio do mundo, das realidades e afãs seculares, homens e mulheres de todas as raças e de todas as condições sociais procurassem amar e servir a Deus e a todos os demais, em seu trabalho ordinário e através dele.

O Decreto "Apostolicam actuositatem" no 5, afirmou claramente que a animação cristã temporal é missão de toda a Igreja. Compete, pois, a todos: à Hierarquia, ao clero, aos religiosos e aos leigos. Poderia dizer-nos como vê o papel e as modalidades de cada um desses setores eclesiais nessa missão única e comum?

Na realidade, a resposta encontra-se nos próprios textos conciliares. À Hierarquia corresponde indicar — como parte do seu Magistério — os princípios doutrinais que hão de presidir e iluminar a realização dessa tarefa apostólica (cfr. Const. Lumen gentium, no 28; Const. Gaudium et spes no 43; Decr. Apostolicamactuositatem, no 24).

Aos leigos, que trabalham imersos em todas as circunstâncias e estruturas próprias da vida secular, corresponde de forma específica a tarefa, imediata e direta, de ordenar essas realidades temporais à luz dos princípios doutrinais enunciados pelo Magistério; mas atuando, ao mesmo tempo, com a necessária autonomia pessoal perante as decisões concretas que tenham de tomar em sua vida social, familiar, política, cultural, etc. (cfr. Const. Lumen gentium, no 31; Gaudium et spes, no 43; Decr. Apostolicam actuositatem, no 7).

Quanto aos religiosos, que se apartam dessas realidades e atividades seculares abraçando um estado de vida peculiar, sua missão é dar testemunho escatológico público que ajude a recordar aos restantes fiéis do Povo de Deus que não têm nesta t erra morada permanente (cfr. Const. Lumen gentium, no 44; Decr. Perfectae Caritatis, no 5). E não pode esquecer-se ainda o serviço que significam também, para a animação cristã da ordem temporal, as numerosas obras de beneficência, de caridade e assistência social que tantos religiosos e religiosas realizam com abnegado espírito de sacrifício.

Uma característica de toda a vida cristã — seja qual for o caminho através do qual se realiza — é a "dignidade e a liberdade dos filhos de Deus". A que se refere, pois, quando ao longo de todos os seus ensinamentos, defende tão insistentemente a liberdade dos leigos?

Refiro-me precisamente à liberdade pessoal que os leigos têm para tomar, à luz dos princípios enunciados pelo Magistério, todas as decisões concretas de ordem teórica ou prática — por exemplo, em relação às diversas opiniões filosóficas ou políticas, às correntes artísticas e culturais, aos problemas de sua vida profissional ou social, etc. — que cada um julgue em consciência convenientes e mais de acordo com suas convicções pessoais e aptidões humanas.

Este necessário âmbito de autonomia que o leigo católico necessita para não ficar capitisdiminuído perante os outros leigos, e para poder levar a cabo, com eficácia, sua peculiar tarefa apostólica em meio das realidades temporais, deve ser sempre cuidadosamente respeitado por todos os que na Igreja exercemos o sacerdócio ministerial. A não ser assim — se se tratasse de instrumentalizar o leigo para fins que ultrapassam os que são próprios do ministério hierárquico — incorrer-se-iam num anacrônico e lamentável clericalismo. Limitar-se-iam enormemente as possibilidades apostólicas dentro do laicato — condenando-o a perpétua imaturidade —, mas sobretudo pôr-se-iam em perigo — hoje especialmente — os próprios conceitos de autoridade e de unidade na Igreja. Não podemos esquecer que a existência também entre os católicos, de um autêntico pluralismo de critério e de opinião, nas coisas que Deus deixou à livre discussão dos homens, não só não se opõe à ordenação hierárquica e à necessária unidade do Povo de Deus, mas ainda as robustece e as defende contra possíveis impurezas.

Sendo tão diversas em sua realização prática a vocação do leigo e a do religioso — ainda que tenham de comum, como é claro, a vocação cristã — como é possível que os religiosos, em suas tarefas de ensino, etc., possam formar os cristãos correntes num caminho verdadeiramente laical?

Será possível na medida em que os religiosos — cuja benemérita atividade ao serviço da Igreja admiro sinceramente — se esforcem por compreender bem quais são as características e as exigências da vocação laical para a santidade e o apostolado em meio do mundo, e queiram e saibam ensiná-las aos alunos.

Com certa freqüência, ao falar do laicato, costuma-se esquecer a realidade da presença da mulher e com isto esfuma-se o seu papel na Igreja. Igualmente, ao tratar-se da "promoção social da mulher", é costume entendê-la simplesmente como presença da mulher na vida pública. Poderia dizer-nos como entende a missão da mulher na Igreja e no mundo?

Não vejo razão pela qual, ao falar do laicato — de sua vida apostólica, de direitos e deveres, etc. —, se deva fazer qualquer espécie de distinção ou discriminação em relação à mulher. Todos os batizados — homens e mulheres — participam igualmente da comum dignidade, liberdade e responsabilidade dos filhos de Deus. Na Igreja existe esta unidade radical e necessária que já São Paulo ensinava aos primeiros cristãos: Quicumque enim in Christo baptizati estis, Christum induistis. Non est Iudaeus, neque Graecus: non est servus, neque libertus, non est masculus, neque femina (Gal. 3, 27-28); não há judeu, nem grego; não há servo, nem livre; não há homem nem mulher.

Excetuando a capacidade jurídica de receber ordens sagradas — distinção que por muitas razões, também de direito divino positivo, considero que se deve reter —, penso que é necessário reconhecer plenamente à mulher na Igreja — na sua legislação, na sua vida interna e na sua ação apostólica — os mesmos direitos e deveres que aos homens: direito ao apostolado, a fundar e dirigir associações, a manifestar responsavelmente sua opinião em tudo o que se refira ao bem comum da Igreja, etc. Já sei que tudo isto — que teoricamente não é difícil admitir, se se consideram as claras razões teológicas que o apóiam — encontrará, de fato, resistência em algumas mentalidades. Ainda me recordo o assombro e até a crítica — agora, pelo contrário, tendem a imitar isto, como tantas outras coisas — com que determinadas pessoas comentaram o fato de o Opus Dei procurar que adquirissem graus acadêmicos em ciências sagradas também às mulheres que pertencem à Secção feminina de nossa Associação.

Penso, no entanto, que estas resistências e reticências irão caindo pouco e pouco. No fundo, é só um problema de compreensão eclesiológica: dar-se conta de que a Igreja não é formada só pelos clérigos e religiosos, mas também os leigos — homens e mulheres — são Povo de Deus e têm, por direito divino, uma missão e responsabilidade próprias.

Mas gostaria de acrescentar que, a meu ver, a igualdade essencial entre o homem e a mulher exige precisamente que se saibam captar ao mesmo tempo os papéis complementares de um e outro na edificação da Igreja e no progresso da sociedade civil: porque não foi em vão que os criou Deus homem e mulher. Esta diversidade há de compreender-se não num sentido patriarcal, mas em toda a profundidade que tem, tão rica de matizes e conseqüências: libertando o homem da tentação de masculinizar a Igreja e a sociedade; e a mulher, de entender sua missão, no Povo de Deus e no mundo, como uma simples reivindicação de atividades até agora apenas realizadas pelo homem, mas que ela pode desempenhar igualmente bem. Parece-me, pois, que tanto o homem como a mulher se hão de sentir justamente protagonistas da história da salvação, mas um e outro de forma complementar.

Tem-se feito notar que, embora a primeira versão de "Caminho" tenha sido editada em 1934, contém muitas idéias que então foram consideradas "heréticas" por alguns, e hoje se encontram assumidas pelo Concílio Vaticano II. Que nos pode dizer sobre isso? Que pontos são esses?

Disto, se mo permite, trataremos devagar em outra ocasião, mais adiante. Por agora, limito-me a dizer-lhe que dou muitas graças ao Senhor, que também se serviu dessas edições de Caminho, em tantas línguas e em tantos exemplares — já passam de dois milhões e meio — para inculcar, no entendimento e na vida de pessoas de raças e línguas muito diversas, essas verdades cristãs, que haviam de vir a ser confirmadas pelo Concílio Vaticano II, levando a paz e a alegria a milhões de cristãos e não cristãos.

Sabemos que, desde há muitos anos, tem uma especial preocupação pela atenção espiritual e humana aos sacerdotes, sobretudo do clero diocesano, manifestada enquanto lhe foi possível, por uma intensa atividade de pregação e de direção espiritual entre eles. E também , a partir de determinado momento, pela possibilidade de que — permanecendo plenamente diocesanos e com a mesma dependência dos Ordinários — fizessem parte da Obra aqueles que sentissem esse chamado. Interessar-nos-ia saber as circunstâncias da vida eclesiástica que — aparte outras razões — motivaram essa sua preocupação. E por outro lado, poderia dizer-nos de que modo essa atividade tem podido e pode ajudar a resolver alguns problemas do clero diocesano ou da vida eclesiástica?

As circunstâncias da vida eclesiástica que motivaram e motivam essa minha preocupação e esse trabalho — já institucionalizado — da Obra, não são circunstâncias de caráter mais ou menos acidental ou transitório, mas sim exigências permanentes de ordem espiritual e humana, intimamente unidas à vida e ao trabalho do sacerdote diocesano.

Refiro-me essencialmente à necessidade que ele tem de ser ajudado— com espírito e meios que em nada modifiquem sua condição diocesana — a procurar a santificação pessoal no exercício do seu próprio ministério. Assim poderá corresponder, com espírito sempre jovem e generosidade cada vez maior, à graça da vocação divina que recebeu, e saberá prevenir-se com prudência e prontidão contra as possíveis crises espirituais e humanas a que facilmente podem dar lugar fatores muito diversos: solidão, dificuldades de ambiente, indiferença, aparente falta de eficácia do trabalho, rotina, cansaço, despreocupação por manter e aperfeiçoar sua formação intelectual e até — e é a origem profunda das crises de obediência e de unidade — a pouca visão sobrenatural das relações com o próprio Ordinário e inclusive com seus próprios irmãos no sacerdócio.

Os sacerdotes diocesanos que — no uso legítimo do direito de associação — se adscrevem à Sociedade Sacerdotal da Santa Cruz, fazem-no única e exclusivamente porque desejam receber essa ajuda espiritual pessoal, de maneira absolutamente compatível com os seus deveres de estado e ministério: de outro modo, essa ajuda não seria ajuda, mas sim complicação, estorvo e desordem.

O espírito do Opus Dei, com efeito, tem como característica essencial o fato de não tirar ninguém do seu lugar — cada um permaneça na vocação com a qual foi chamado (1 Cor. 6, 20), mas de levar cada um a cumprir os encargos e deveres do seu próprio estado, da sua missão na Igreja e na sociedade civil, com a maior perfeição possível. por isso, quando um sacerdote se adscreve à Obra, não abandona nem modifica em nada sua vocação diocesana — dedicação ao serviço da Igreja local a que está incardinado, plena dependência do Ordinário próprio, espiritualidade secular, união com os outros sacerdotes, etc. —; antes, pelo contrário, compromete-se a viver essa vocação com plenitude, porque sabe que deve procurar a perfeição precisamente no próprio exercício de suas obrigações sacerdotais, como sacerdote diocesano.

Este princípio tem na nossa Associação uma série de aplicações práticas de ordem jurídica e ascética, que seria longo pormenorizar. Direi só, como exemplo, que — diferentemente de outras Associações nas quais se exige um voto ou promessa de obediência ao Superior interno — a dependência dos sacerdotes diocesanos adscritos ao Opus Dei não é uma dependência de regime, já que não há uma hierarquia interna para eles nem, portanto, perigo de duplo vínculo de obediência, mas antes uma relação voluntária de ajuda e assistência espiritual.

O que estes sacerdotes encontram no Opus Dei é, sobretudo, a ajuda ascética continuada que desejam receber, dentro de uma espiritualidade secular e diocesana e, independentemente das mudanças pessoais e circunstâncias que se possam verificar no governo da respectiva Igreja local. Juntam assim à direção espiritual coletiva que o Bispo dá com sua pregação, suas cartas pastorais, reuniões, instruções disciplinares, etc., uma direção espiritual pessoal, solícita e contínua em qualquer lugar onde se encontrem, que completa — respeitando-a sempre como um dever grave — a direção comum ministrada pelo próprio Bispo. Através dessa direção espiritual pessoal — tão recomendada pelo Concílio Vaticano II e pelo Magistério ordinário —, fomenta-se no sacerdote a vida de piedade, a caridade pastoral continuada, o zelo pelos apostolados diocesanos, o amor e a obediência que devem ao Ordinário próprio, a preocupação pelas vocações sacerdotais e pelo seminário, etc.

Os frutos deste trabalho? São para as Igrejas locais que estes sacerdotes servem. E com isto se alegra a minha alma de sacerdote diocesano, que tem tido além disso, repetidas vezes, o consolo de ver com que carinho o Papa e os Bispos abençoam, desejam e favorecem este trabalho.

Em diversas ocasiões, ao referir-se ao começo da vida do Opus Dei, tem dito que unicamente possuía "juventude, graça de Deus e bom humor". Além disso, pelos anos de 1920 e seguintes, a doutrina do laicato ainda não tinha alcançado o desenvolvimento que atualmente presenciamos. No entanto, o Opus Dei é um fenômeno palpável na vida de Igreja. Poderia explicar-nos como, sendo um sacerdote jovem, pôde ter uma compreensão tal que lhe permitisse realizar este empreendimento?

Eu não tive e não tenho outro empenho que o de cumprir a Vontade de Deus: permita-me que não desça a mais pormenores sobre o começo da Obra — que o Amor de Deus me fazia pressentir desde o ano de 1917 —, porque estão intimamente unidos à história da minha alma e pertencem à minha vida interior. A única coisa que lhe posso dizer é que atuei, em todos os momentos, com a vênia e com a afetuosa bênção do queridíssimo Bispo de Madrid, onde nasceu o Opus Dei no dia 2 de Outubro de 1928. Mais tarde, sempre também com o beneplácito e o alento da Santa Sé e, em cada caso, dos Rev.mos Ordinários dos locais onde trabalhamos.

Há quem, perante a existência de leigos do Opus Dei em lugares influentes da sociedade espanhola, fale da influência do Opus Dei na Espanha. Poderia explicar-nos qual é essa influência?

Incomoda-me profundamente tudo quanto se possa parecer a auto-elogio. Mas penso que não seria humildade, antes cegueira e ingratidão para com o Senhor — que tão generosamente abençoa o nosso trabalho —, não reconhecer que o Opus Dei influi realmente na sociedade Espanhola. No ambiente dos países onde a obra já trabalha há bastantes anos — na Espanha, concretamente, trinta e nove, porque foi da Vontade de Deus que a nossa Associação aqui nascesse para a vida da Igreja —, é lógico que este influxo já tenha notável relevância social, paralelamente ao desenvolvimento progressivo do trabalho.

De que natureza é essa influência? É evidente que. sendo uma Associação de fins espirituais, apostólicos, a natureza do seu influxo — na Espanha tal como nas outras nações onde trabalhamos — não pode ser senão desse tipo: uma influência espiritual, apostólica. Tal como sucede com a totalidade da Igreja — alma do mundo —, o influxo do Opus Dei na sociedade civil não é de caráter temporal — social, político, econômico, etc. —, ainda que na realidade venha a repercutir nos aspectos éticos de todas as atividades humanas; é, sim, um influxo de ordem diversa e superior, que se exprime com um verbo preciso: santificar.

E isto leva-nos ao tema das pessoas do Opus Dei que em sua pergunta classificou como influentes. Para uma Associação que tenha como fim fazer política, serão influentes aqueles dos seus membros que ocuparem um lugar no parlamento ou no conselho de ministros. Se a Associação é cultural, considerará influentes os membros que forem filósofos de fama, ou prêmios nacionais de literatura, etc. Se a Associação, pelo contrário, se propõe — como é o caso do Opus Dei — santificar o trabalho ordinário dos homens, seja ele material ou intelectual, é evidente que deverão considerar-se influentes todos os membros: porque todos trabalham — o genérico dever humano de trabalhar encontra na Obra especiais ressonâncias disciplinares e ascéticas — e porque todos procuram realizar seu trabalho — seja qual for — santamente, cristãmente, com desejo de perfeição. Por isso, para mim, tão influente — tão importante, tão necessário — é o testemunho de um dos meus filhos que seja mineiro, entre seus companheiros de trabalho, como o de outro que seja reitor de universidade, entre os restantes professores do claustro acadêmico.

De onde procede, pois, a influência do Opus Dei? A resposta é a simples consideração desta realidade sociológica: à nossa Associação pertencem pessoas de todas as condições sociais, profissões, idades e estados de vida; homens e mulheres, clérigos e leigos, velhos e jovens, solteiros e casados, universitários, pessoas que exercem profissões liberais ou que trabalham em instituições oficiais, etc. Já pensou no poder de irradiação cristã que uma gama tão ampla e tão variada de pessoas representa, sobretudo se andam pelas dezenas de milhar e estão animadas de um mesmo espírito: santificar sua profissão ou ofício — em qualquer ambiente social em que atuem —, santificar-se nesse trabalho e santificar com esse trabalho?

A estes trabalhos apostólicos pessoais deve acrescentar-se o de nossas obras corporativas de apostolado: Residências de estudantes, Casas de convívio e retiro. a Universidade de Navarra, Centros de formação para operários e camponeses, Escolas técnicas, Colégios, Escolas de formação para a mulher, etc. Estas obras têm sido e são indubitavelmente focos de irradiação do espírito cristão. Promovidas por leigos, dirigidas como um trabalho profissional por cidadãos leigos, iguais aos seus companheiros que desempenharam a mesma tarefa ou ocupação, e abertas a pessoas de todas as classes e condições, têm sensibilizado amplos estratos da sociedade sobre a necessidade de dar uma resposta cristã às questões que o exercício de suas profissões ou empregos lhes levanta.

Tudo isso é o que dá relevo e transcendência social ao Opus Dei. Não, portanto, a circunstância de alguns membros ocuparem cargos de influência humana — coisa que não nos interessa absolutamente nada, e que fica por isso sujeita à livre decisão e responsabilidade de cada um —, mas o fato de todos, e a bondade de Deus faz com que sejam muitos, realizarem trabalhos — desde os mais humildes — divinamente influentes.

E isso é lógico: quem pode pensar que a influência da Igreja nos Estados Unidos começou no dia em que foi eleito Presidente o católico John Kennedy?

De vez em quando, ao falar da realidade do Opus Dei, tem afirmado que é uma "desorganização organizada". Poderia explicar aos nossos leitores o significado desta expressão?

Quero dizer que damos uma importância primária e fundamental à espontaneidade apostólica da pessoa, à sua iniciativa livre e responsável, guiada pela ação do Espírito; e não a estruturas organizativas, mandatos, táticas e planos impostos de cima, como ato de governo.

Existe um mínimo de organização, evidentemente, com um governo central, que atua sempre colegialmente, e tem sua sede em Roma; e governos regionais, também colegiais, cada um presidido por um Conselheiro. Mas toda a atividade desses organismos dirige-se fundamentalmente a um fim: proporcionar aos sócios a assistência espiritual necessária para a sua vida de piedade, e uma adequada formação espiritual, doutrinal-religiosa e humana. Depois: Patos à água! Quer dizer: cristãos santificando todos os caminhos dos homens, que todos têm o aroma da passagem de Deus.

Ao chegar a esse limite, a esse momento, a Associação como tal terminou sua tarefa — aquela, precisamente, para a qual os sócios do Opus Dei se associam — já não tem o que fazer, não pode nem deve fazer mais nenhuma indicação. Começa então a livre e responsável ação de cada sócio. Cada um, com espontaneidade apostólica, agindo com completa liberdade pessoal e formando autonomamente sua consciência perante as decisões concretas que tenha de tomar, procura a perfeição cristã e esforça-se por dar testemunho cristão no seu próprio ambiente, santificando o trabalho profissional, intelectual ou manual. Naturalmente, ao tomar cada um autonomamente essas decisões em sua vida secular, nas realidades temporais em que atua, se dão com freqüência opções, critérios e atuações diversas: dá-se, numa palavra, essa bendita desorganização, esse justo e necessário pluralismo, que é uma característica essencial do bom espírito do Opus Dei, e que a mim pareceu sempre ser a única maneira reta e ordenada de conceber o apostolado de leigos.

Dir-lhe-ei mais: essa desorganização organizada aparece inclusive nas próprias obras apostólicas corporativas que o Opus Dei realiza, com o desejo de contribuir também, enquanto Associação, para resolver cristãmente problemas que afetam as comunidades humanas dos diversos países. Essas atividades e iniciativas da Associação são sempre de caráter diretamente apostólico: obras educativas, assistenciais ou de beneficência. Mas, como é do nosso espírito, precisamente, estimular que as iniciativas surjam da base, e como as circunstâncias, necessidades e possibilidades de cada nação ou grupo social são peculiares e extraordinariamente diversas entre si, o governo central da Obra deixa aos governos regionais — que gozam de autonomia praticamente total — a responsabilidade de decidir, promover e organizar aquelas atividades apostólicas concretas que julguem mais convenientes: desde um centro universitário ou uma residência de estudantes, até um dispensário ou uma escola agrícola para camponeses. Como resultado lógico, aparece um mosaico multicolor e variado de atividades: um mosaico organizadamente desorganizado.

De acordo com o que acaba de nos referir, de que maneira considera que a realidade eclesial do Opus Dei se insere na ação pastoral de toda a Igreja? E no Ecumenismo?

Parece-me conveniente um esclarecimento prévio: o Opus Dei não é nem pode ser considerado uma realidade ligada ao processo evolutivo do estado de perfeição na Igreja, não é uma forma moderna ou aggiornata desse estado. Com efeito, nem a concepção teológica do status perfectionis — que São Tomás, Suárez e outros autores plasmaram decisivamente na doutrina — nem as diversas concretizações jurídicas que se deram ou se podem dar a esse conceito teológico, têm nada que ver com a espiritualidade e o fim apostólico que Deus quis para a nossa Associação. Basta considerar — porque seria longa uma exposição doutrinal completa — que ao Opus Dei não interessam nem votos, nem promessas, nem qualquer forma de consagração para seus sócios, além da consagração que já todos receberam no Batismo. A nossa Associação não pretende de nenhum modo que seus sócios mudem de estado, que deixem de ser simples fiéis iguais ao outros, para adquirirem o peculiar status perfectionis. Pelo contrário, o que deseja e procura, é que cada um faça apostolado e se santifique dentro do seu próprio estado, no mesmo lugar e condição que tem na Igreja e na sociedade civil. Não tiramos ninguém do seu lugar, nem afastamos ninguém do seu trabalho ou dos seus nobres compromissos de ordem temporal.

A realidade social, a espiritualidade e a ação do Opus Dei inserem-se, pois, em um manancial da vida da Igreja muito diferente: concretamente, no processo teológico e vital que está conduzindo o laicato à plena assunção de suas responsabilidades eclesiais, ao seu modo próprio de participar na missão de Cristo e da sua Igreja. Este tem sido, e continua sendo, nos quase quarenta anos de existência da obra, o anseio constante — sereno, mas firme — com que Deus quis encaminhar na minha alma e nas dos meus filhos o desejo de servi-lo.

Que contribuição oferece o Opus Dei a esse processo? Talvez não seja este o momento histórico mais adequado para proceder a uma apreciação global deste tipo. Apesar de se tratar de problemas dos quais o Concílio Vaticano II muito se ocupou — com quanta alegria da minha alma! — e apesar de não poucos conceitos e situações referentes à vida e missão do laicato terem recebido já do Magistério suficiente confirmação e luz, há um considerável núcleo de questões que constituem ainda, para a generalidade da doutrina, verdadeiros problemas-limite da teologia. A nós, dentro do espírito que Deus deu ao Opus Dei e que procuramos viver com fidelidade — apesar das nossas imperfeições pessoais —, parece-nos já divinamente resolvida a maior parte desses problemas discutidos, mas não pretendemos apresentar essas soluções como as únicas possíveis.

Há simultaneamente aspectos do mesmo processo de desenvolvimento eclesiológico, que representam magníficas aquisições doutrinais — para as quais quis Deus indubitavelmente que contribuísse, em parte talvez não pequena, o testemunho do espírito e da vida do Opus Dei, juntamente com outras contribuições valiosas de iniciativas e associações apostólicas não menos beneméritas. Mas são aquisições doutrinais, e talvez passe ainda bastante tempo até chegarem a encarnar-se realmente na vida total do Povo de Deus. Aliás, em suas perguntas anteriores já recordou alguns desses aspectos: o desenvolvimento de uma autêntica espiritualidade laical; a compreensão da peculiar função eclesial — não eclesiástica ou oficial — própria do leigo; a distinção dos direitos e dos deveres que o leigo tem enquanto leigo; as relações Hierarquia-laicato; a igualdade de dignidade e a complementaridade das funções do homem e da mulher na Igreja; a necessidade de conseguir uma ordenada opinião pública do Povo de Deus, etc.

Tudo isso constitui evidentemente uma realidade muito fluida e nem sempre isenta de paradoxos. Uma mesma coisa que há quarenta anos escandalizava quase todos, ou todos, hoje em dia, a quase ninguém causa estranheza, embora na verdade sejam ainda muito poucos os que a compreendem a fundo e a vivem ordenadamente.

Vou-me explicar melhor com um exemplo. Em 1932, comentando aos meus filhos do Opus Dei alguns dos aspectos e conseqüências da dignidade e responsabilidade peculiares que o Batismo confere às pessoas, escrevia-lhes num documento: "Impõe-se repelir o preconceito de que os fiéis correntes não podem fazer mais do que ajudar o clero, em apostolados eclesiásticos. O apostolado dos leigos não tem de ser sempre uma simples participação no apostolado hierárquico: compete-lhes o dever de fazerem apostolado. E isso não por receberem uma missão canônica, mas por serem parte da Igreja; essa missão… realizavam-na através da profissão, do ofício, da família, dos colegas, dos amigos".

Hoje, depois dos ensinamentos solenes do Vaticano II, ninguém na Igreja porá em dúvida a ortodoxia desta doutrina. Mas, quantos abandonaram realmente sua concepção única do apostolado dos leigos como um trabalho pastoral organizado de cima para baixo? Quantos, superando a anterior concepção monolítica do apostolado laical, compreendem que ele possa e inclusive deva também existir sem necessidade de rígidas estruturas centralizadas, missões canônicas e mandatos hierárquicos? Quantos, que classificam o laicato de longa manus Ecclesiae, não estarão confundindo ao mesmo tempo o conceito de Igreja-Povo de Deus com o conceito mais limitado de Hierarquia? Ou ainda, quantos leigos entendem devidamente que só em delicada comunhão com a Hierarquia têm o direito de reivindicar o seu âmbito legítimo de autonomia apostólica?

Poder-se-iam formular considerações semelhantes em relação a outros problemas, porque é realmente muito, muitíssimo o que está ainda por conseguir, tanto na necessária exposição doutrinal como na educação das consciências e na própria reforma da legislação eclesiástica. Peço muito ao Senhor — a oração sempre foi a minha grande arma — que o Espírito Santo assista ao seu Povo, e especialmente à Hierarquia, na realização destas tarefas. E peço-Lhe também que continue a servir-se do Opus Dei, para que possamos contribuir e ajudar, em tudo que estiver ao nosso alcance, deste difícil mas maravilhoso processo de desenvolvimento e crescimento da Igreja.

Como se insere o Opus Dei no Ecumenismo? — perguntava — me também. Já contei no ano passado a um jornalista francês — e sei que encontrou eco inclusive em publicações de irmãos separados — o que uma vez comentei ao Santo Padre João XXIII, movido pelo encanto afável e paterno de seu trato: "Santo Padre, na nossa Obra, todos os homens, católicos ou não, sempre encontram um ambiente amável: não aprendi o ecumenismo de Vossa Santidade". Ele riu emocionado, porque sabia que, já a partir de 1950, a Santa Sé havia autorizado o Opus Dei a receber como associados Cooperadores os não-católicos e até os não-cristãos.

São muitos, efetivamente — e entre eles contam-se pastores e até bispos de suas respectivas confissões —, os irmãos separados que se sentem atraídos pelo espírito do Opus Dei e colaboram com nossos apostolados. E são cada vez mais freqüentes — à medida que os contactos se intensificam — as manifestações de simpatia e de cordial entendimento, resultantes de os sócios do Opus Dei concentrarem a sua espiritualidade no simples propósito de viverem responsavelmente os compromissos e exigências batismais do cristão. O desejo de procurar a plenitude da vida cristã e de fazer apostolado, procurando a santificação do trabalho profissional; o fato de vivermos imersos nas realidades seculares, respeitando sua própria autonomia, mas tratando-as com espírito e amor de almas contemplativas; a primazia que na organização de nossos trabalhos concedemos à pessoa, à ação do Espírito nas almas, ao respeito da dignidade e da liberdade que provém da filiação divina do cristão; a defesa contra a concepção monolítica e institucionalista do apostolado dos leigos, da legítima capacidade de iniciativa, dentro do necessário respeito pelo bem comum: estes e outros aspectos mais do nosso modo de ser e trabalhar são pontos de fácil encontro, onde os irmãos separados descobrem — feita vida, experimentada pelos anos — uma boa parte dos princípios doutrinais em que eles e nós, os católicos, pomos fundamentadas esperanças ecumênicas.

Mudando de tema, interessava-nos saber o que pensa em relação ao atual momento da Igreja. Concretamente, como o qualificaria? Que papel julga poderem ter, neste momento, as tendências que de modo geral têm sido chamadas de "progressistas" e "integristas"?

A meu ver, o atual momento da Igreja poderia qualificar-se de positivo e, ao mesmo tempo, de delicado, como todas as crises de crescimento. Positivo, sem dúvida, porque as riquezas doutrinais do Concílio Vaticano II colocaram a Igreja inteira — todo o Povo sacerdotal de Deus — perante uma nova etapa, sumamente esperançosa, de renovada fidelidade ao propósito divino da salvação que se lhe confiou. Momento delicado também, porque as conclusões teológicas a que se chegou não são de caráter — passe a expressão — abstrato ou teórico; trata-se de uma teologia sumamente viva, quer dizer, com imediatas e diretas aplicações de ordem pastoral, ascética e disciplinar, que chegam ao mais íntimo da vida interna e externa da comunidade cristã: liturgia, estruturas organizativas da Hierarquia, formas apostólicas, Magistério, diálogo com o mundo, ecumenismo, etc. — e, portanto, ao mais íntimo da vida cristã e da própria consciência dos fiéis.

Uma e outra destas realidades tornam respectivamente presentes na nossa alma, por um lado, o otimismo cristão — a gozosa certeza de que o Espírito Santo fará frutificar abundantemente a doutrina com que enriqueceu a Esposa de Cristo —, e, ao mesmo tempo a prudência por parte de quem investiga ou governa, porque, especialmente agora, a falta de serenidade ou de ponderação no estudo dos problemas poderia ocasionar um dano imenso.

Quanto às tendências que chama de integristas e progressistas em sua pergunta, torna-se difícil para mim dar uma opinião sobre o papel que podem desempenhar neste momento, porque desde sempre repeli a conveniência e mesmo a possibilidade de se fazerem catalogações ou simplificações desse tipo. Essa divisão — que às vezes é levada a extremos de verdadeiro paroxismo, ou se procura perpetuar, como se os teólogos e os fiéis em geral estivessem destinados a uma contínua orientação bipolar — parece-me que obedece, no fundo, ao convencimento de que o progresso doutrinal e vital do Povo de Deus terá de ser resultante de uma perpétua tensão dialética. Eu, pelo contrário, prefiro acreditar — com toda a minha alma — na ação do Espírito Santo, que sopra onde quer e em quem quer.

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