Lista de pontos

Há 17 pontos em "Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá ", cuja matéria seja Opus Dei  → fim e meio sobrenaturais .

Desde há muitos anos que vem dizendo e escrevendo que a vocação dos leigos consiste em três coisas: "santificar o trabalho, santificar-se no trabalho e santificar os outros com o trabalho". Poderia precisar-nos o que entende por "santificar o trabalho"?

É difícil explicá-lo em poucas palavras, porque nessa expressão se acham implicados conceitos fundamentais da própria teologia da Criação. O que sempre ensinei — desde há quarenta anos — é que todo o trabalho humano honesto, intelectual ou manual, deve ser realizado pelo cristão com a maior perfeição possível: com perfeição humana (competência profissional) e com perfeição cristã (por amor à vontade de Deus e a serviço dos homens). Porque, feito assim, esse trabalho humano, por mais humilde e insignificante que pareça, contribui para a ordenação cristã das realidades temporais — a manifestação de sua dimensão divina — e é assumido e integrado na obra prodigiosa da Criação e da Redenção do mundo: eleva-se assim o trabalho à ordem da graça , santificando-se, converte-se em obra de Deus, operatio Dei, opus Dei.

Ao recordar aos cristãos as palavras maravilhosas do Gênesis — que Deus criou o homem para que trabalhasse —, fixamo-nos no exemplo de Cristo, que passou a quase totalidade da sua vida terrena trabalhando numa aldeia como artesão. Amamos esse trabalho humano que Ele abraçou como condição de vida, cultivou e santificou. Vemos no trabalho — na nobre fadiga criadora dos homens — não só um dos mais altos valores humanos, meio imprescindível para o progresso da sociedade e para o ordenamento cada vez mais justo das relações entre os homens, mas também um sinal do amor de Deus para com as suas criaturas e do amor dos homens entre si e para com Deus: um meio de perfeição, um caminho de santificação.

Por isso, o único objetivo do Opus Dei sempre foi este: contribuir para que no meio do mundo, das realidades e afãs seculares, homens e mulheres de todas as raças e de todas as condições sociais procurassem amar e servir a Deus e a todos os demais, em seu trabalho ordinário e através dele.

Poderia explicar qual é a missão central e os objetivos do Opus Dei? Em que precedentes baseou suas idéias sobre a Associação? Ou é o Opus Dei algo único, totalmente novo dentro da Igreja e da Cristandade? Pode ser comparado às ordens religiosas e aos institutos seculares, ou a associações católicas do tipo, por exemplo, da "Holy Name Society", os "Cavaleiros de Colombo", o "Christopher Movement", etc?

O Opus Dei tem por fim promover entre pessoas de todas as classes da sociedade o desejo da plenitude da vida cristã no meio do mundo. Quer dizer, o Opus Dei pretende ajudar as pessoas que vivem no mundo — o homem vulgar, o homem da rua — a levar uma vida plenamente cristã, sem modificar seu modo normal de vida, nem seu trabalho ordinário, nem suas aspirações e anseios.

Por isso se pode dizer, como escrevi há muitos anos, que o Opus Dei é velho como o Evangelho e, como o Evangelho, novo. É lembrar aos cristãos as maravilhosas palavras que se lêem no Gênesis: Deus criou o homem para trabalhar. Detivemo-nos no exemplo de Cristo, que passou quase toda a vida na terra trabalhando como artesão numa aldeia. O trabalho não é apenas um dos mais altos valores humanos e meio com que os homens devem contribuir para o progresso da sociedade; é também caminho de santificação.

A que outras organizações poderíamos comparar o Opus Dei? Não é fácil encontrar uma resposta, porque, ao tentar comparar entre si organizações de finalidades espirituais, corre-se o risco de ficar nos traços externos ou nas denominações jurídicas, esquecendo o mais importante: o espírito que dá vida e razão de ser a todo o trabalho.

Limitar-me-ei a dizer-lhes que, relativamente às organizações que mencionou, o Opus Dei está muito longe das ordens religiosas e dos institutos seculares, e mais próximo de instituições como a Holy Name Society.

O Opus Dei é uma organização internacional de leigos, a que também pertencem sacerdotes seculares (uma exígua minoria em comparação com o total de sócios). Seus sócios são pessoas que vivem no mundo e nele exercem a sua profissão ou ofício. Não entram no Opus Dei para abandonar esse trabalho, antes, pelo contrário, para encontrar uma ajuda espiritual que os leve a santificar o seu trabalho ordinário e a convertê-lo também em meio de santificar-se e de ajudar os outros a santificar-se. Não mudam de estado — continuam a ser solteiros, casados, viúvos ou sacerdotes —, mas procuram servir a Deus e aos outros homens dentro do seu próprio estado. O Opus Dei não está interessado em votos ou promessas; o que pede aos seus sócios é que, no meio das deficiências e erros próprios de toda a vida humana, se esforcem por praticar as virtudes humanas e cristãs, sabendo-se filhos de Deus.

Se se quer procurar um termo de comparação, o modo mais fácil de entender o Opus Dei é pensar na vida dos primeiros cristãos. Eles viviam profundamente a sua vocação cristã; procuravam seriamente a perfeição a que estavam chamados pelo fato, simples e sublime, do Batismo. Não se distinguiam exteriormente dos demais cidadãos. Os sócios do Opus Dei são pessoas comuns; desenvolvem um trabalho corrente; vivem no meio do mundo de acordo com o que são: cidadãos cristãos que querem corresponder cabalmente às exigências da sua fé.

Poderia descrever como se desenvolveu e evoluiu o Opus Dei desde a sua fundação, tanto na sua natureza como nos seus objetivos, num período que presenciou uma enorme mudança dentro da própria Igreja?

Desde o primeiro momento, o único objetivo do Opus Dei foi o que acabo de descrever: contribuir para que houvesse no meio do mundo homens e mulheres de todas as raças e condições sociais que procurassem amar e servir a Deus e aos demais homens em e através do seu trabalho cotidiano. Com o começo da obra, em 1928, o que preguei foi que a santidade não é coisa para privilegiados, pois podem ser divinos todos os caminhos da terra, todos os estados, todas as profissões, todas as tarefas honestas. As implicações desta mensagem são muitas, e a experiência da vida da Obra ajudou-me a conhecê-las cada vez com maior profundidade e riqueza de matizes.

A Obra nasceu pequena e foi crescendo normalmente, de uma maneira gradual e progressiva, como cresce um organismo vivo, como tudo que se desenvolve na História. Mas seu objetivo e razão de ser não mudou e não mudará, por muito que possa mudar a sociedade, porque a mensagem do Opus Dei é que se pode santificar qualquer trabalho honesto, sejam quais forem as circunstâncias em que se desenvolve.

Hoje fazem parte da Obra pessoas de todas as profissões: não apenas médicos, advogados, engenheiros e artistas, mas também pedreiros, mineiros, camponeses; qualquer profissão — desde diretores de cinema e pilotos de jatos até cabeleireiras de alta moda. Para os sócios do Opus Dei, o estar em dia e compreender o mundo moderno é coisa natural e instintiva, porque são eles — junto com os demais cidadãos, iguais a eles — quem faz nascer esse mundo e os torna moderno.

Sendo este o espírito da nossa Obra, compreenderá que foi uma grande alegria para nós ver como o Concílio declarava solenemente que a Igreja não rejeita o mundo em que vive, nem seu progresso e desenvolvimento, mas o compreende e ama. Aliás, uma das características centrais da espiritualidade que os s ócios da Obra se esforçam por viver — há quase 40 anos — é saberem-se ao mesmo tempo parte da Igreja e do Estado, assumindo cada um plenamente e com toda a liberdade a sua responsabilidade individual de cristão e de cidadão.

Como explica o imenso êxito do Opus Dei e por que critérios mede o senhor esse êxito?

Quando um empreendimento é sobrenatural, pouco importam o êxito ou o fracasso, tal como se costumam entender vulgarmente. Já dizia São Paulo aos cristãos de Corinto que, na vida espiritual, o que interessa não é o juízo dos outros, nem o nosso próprio, mas o juízo de Deus.

É verdade que a Obra está hoje universalmente estendida: a ela pertencem homens e mulheres de cerca de 70 nacionalidades. Ao pensar nesse fato, eu mesmo me surpreendo. Não encontro para isso explicação humana alguma, a não ser a vontade de Deus, pois o Espírito sopra onde quer e serve-se de quem quer para levar a cabo a santificação dos homens. Tudo isso é para mim ocasião de ação de graças, de humildade e de oração a Deus, para saber sempre servi-Lo.

Pergunta-me também qual é o critério pelo qual meço e julgo as coisas. A resposta é muito simples; santidade, frutos de santidade.

O apostolado mais importante do Opus Dei é aquele que cada sócio realiza através do testemunho de sua vida e com a sua palavra, no convívio diário com seus amigos e colegas de profissão. Quem pode medir a eficácia sobrenatural deste apostolado calado e humilde? não se pode avaliar a ajuda que representa o exemplo de um amigo leal e sincero, ou a influência de uma boa mãe no seio da família.

Mas talvez a sua pergunta se refira aos apostolados corporativos que o Opus Dei leva a cabo, na suposição de que, neste caso, se podem medir os resultados do ponto de vista humano, técnico: se uma escola de capacitação operária consegue promover socialmente os homens que a freqüentam, se uma universidade dá a seus estudantes uma formação profissional e cultural adequadas. Admitindo que a sua pergunta tenha esse sentido, dir-lhe-ei que o resultado se pode explicar, em parte, por se tratar de tarefas realizadas por pessoas que as executam como atividade profissional específica, para a qual se prepararam como todo aquele que deseja realizar um trabalho sério. Isto quer dizer, entre outras coisas, que não se promovem essas obras de acordo com esquemas preconcebidos, mas que em cada caso se estudam as necessidades peculiares da sociedade em que se vão inserir, para adaptá-las às exigências reais.

Mas repito-lhe que o Opus Dei não se interessa primordialmente pela eficácia humana. O êxito ou o fracasso real desses trabalhos depende de que, sendo humanamente bem feitos, sirvam ou não para que, tanto os que realizam essas atividades como os que delas se beneficiem, amem a Deus, sintam-se irmãos de todos os demais homens e manifestem estes sentimentos num serviço desinteressado à humanidade.

A que atribui a crescente importância que se dá ao Opus Dei? É devida só ao atrativo da sua doutrina ou é também um reflexo das ansiedades da idade moderna?

O Senhor suscitou o Opus Dei em 1928 para ajudar a recordar aos cristãos que, como conta o livro do Gênesis, Deus criou o homem para trabalhar. Viemos chamar de novo a atenção para o exemplo de Jesus que, durante trinta anos, permaneceu em Nazaré trabalhando, desempenhando um ofício. Nas mãos de Jesus, o trabalho, e um trabalho profissional semelhante àquele que desenvolvem milhões de homens no mundo, converte-se em tarefa divina, em trabalho redentor, em caminho de salvação.

O espírito do Opus Dei recolhe a formosíssima realidade — esquecida durante séculos por muitos cristãos — de que qualquer trabalho humanamente digno e nobre se pode converter em tarefa divina. No serviço de Deus, não há ofícios de pouca categoria: todos são de muita importância.

Para amar a Deus e servi-Lo, não é necessário fazer coisas esquisitas. Cristo pede a todos os homens sem exceção que sejam perfeitos como seu Pai celestial é perfeito (Mt. 5, 48). Para a grande maioria dos homens, ser santo significa santificar o seu trabalho, santificar-se no trabalho e santificar os outros com o trabalho, e assim encontrar Deus no caminho da vida.

As condições da sociedade contemporânea, que valoriza cada vez mais o trabalho, facilitam evidentemente que os homens do nosso tempo possam compreender este aspecto da mensagem cristã que o espírito do Opus Dei veio sublinhar. Porém, mais importante ainda é o influxo do Espírito Santo, que em sua ação vivificadora quis que o nosso tempo fosse testemunha de um grande movimento de renovação em todo o Cristianismo. Quando se lêem os decretos do Concílio Vaticano II, percebe-se claramente que uma das partes importantes dessa renovação foi precisamente a revalorização do trabalho ordinário e da dignidade da vocação do cristão que vive e trabalha no mundo.

Isto traz como conseqüência uma visão mais profunda da Igreja, como comunidade formada por todos os fiéis, sendo todos nós solidários de uma mesma missão, que cada um deve realizar de acordo com as suas circunstâncias pessoais. Os leigos, graças aos impulsos do Espírito Santo, são cada vez mais conscientes de serem Igreja, de terem uma missão específica, sublime e necessária, já que foi querida por Deus. E sabem que essa missão depende da sua própria condição de cristãos; não necessariamente de um mandato da Hierarquia, embora seja evidente que devem, levá-la a cabo em união com a Hierarquia eclesiástica e segundo os ensinamentos do Magistério: sem união do Corpo episcopal e com a sua Cabeça, o Romano Pontífice, não pode haver, para um católico, união com Cristo. O modo específico de os leigos contribuírem para a santidade e o apostolado da Igreja é a ação livre e responsável no seio das estruturas temporais, a elas levando o fermento da mensagem cristã. O testemunho de vida cristã, a palavra que ilumina em nome de Deus, e a ação responsável, a serviço dos outros e como contributo para a solução dos problemas comuns, são outras tantas manifestações dessa presença através da qual o simples cristão cumpre a missão para que Deus o chamou.

Faz muitíssimos anos, desde a própria data da fundação do Opus Dei, meditei e fiz meditar umas palavras de Cristo relatadas por São João: "E eu, quando for levantado sobre a terra, atrairei tudo a Mim" (Jo 12, 32). Cristo, ao morrer na Cruz, atrai a Si a criação inteira; e, em seu nome, os cristãos, trabalhando em meio ao mundo, hão de reconciliar todas as coisas com Deus, colocando Cristo no cume de todas as atividades humanas.

Gostaria de acrescentar que, a partir desta consciencialização dos leigos, está se produzindo um desenvolvimento análogo da sensibilidade dos pastores. Apercebem-se do elemento específico da vocação laical, que deve ser promovida e favorecida mediante uma pastoral que leve a descobrir no meio do Povo de Deus o carisma da santidade e do apostolado, nas infinitas e diversíssimas formas em que Deus o concede.

Esta nova pastoral é muito exigente, mas, a meu ver, absolutamente necessária. Requer o dom sobrenatural do discernimento de espíritos, a sensibilidade para as coisas de Deus, a humildade de não impor as preferências pessoais e de colocar-se a serviço daquilo que Deus promove nas almas. Numa palavra: o amor à legítima liberdade dos filhos de Deus, que encontram Cristo e são feitos portadores de Cristo, percorrendo caminhos muitos diversos entre si, mas todos igualmente divinos.

Um dos maiores perigos que hoje ameaçam a Igreja poderia ser precisamente o de não reconhecer essas exigências divinas da liberdade cristã; e, deixando-se levar por falsas razões de eficácia, pretender impor uma uniformidade aos cristãos. Na raiz dessas atitudes encontra-se algo não só legítimo como digno de encômios: o desejo de que a Igreja dê um testemunho tal, que comova o mundo moderno. Temo, porém que o caminho seja errado e que leve, por um lado, a comprometer a Hierarquia em questões temporais, caindo num clericalismo diverso, mas tão nefando como o dos séculos passados; e por outro, a isolar os leigos, os simples cristãos, separando-os do mundo em que vivem para convertê-los em porta-vozes de decisões ou idéias concebidas fora desse mundo.

Parece-me que o que se espera de nós, sacerdotes é a humildade de aprendermos a não estar na moda, sendo realmente servos dos servos de Deus — lembrando-nos daquele grito de João Batista: illum oportet crescere, me autem minui (Jo 3, 30), convém que Cristo cresça e que eu diminua —, para que os cristãos correntes, os leigos, tornem Cristo presente em todos os ambientes da sociedade. A missão de dar doutrina, de ajudar a penetrar nas exigências pessoais e sociais do Evangelho, de levar a discernir os sinais dos tempos — é e será sempre uma das tarefas fundamentais do sacerdote. No entanto, toda a atividade sacerdotal deve ser realizada dentro do maior respeito pela legítima liberdade das consciências; cada homem deve responder a Deus livremente. Aliás, qualquer católico, além dessa ajuda do sacerdote, tem ainda luzes próprias que recebe de Deus, graça de estado para levar avante a missão específica que recebeu, como homem e como cristão.

Se alguém pensa que, para a voz de Cristo se fazer ouvir no mundo de hoje, é necessário que o clero fale ou marque sempre sua presença — é porque ainda não entendeu bem a dignidade da vocação divina de todos e de cada um dos fiéis cristãos.

Dentro dessa panorâmica, qual a tarefa que o Opus Dei tem realizado e realiza? Que relações de colaboração mantêm seus sócios com outras organizações que trabalham nesse campo?

Não compete a mim emitir um juízo histórico sobre o que o Opus Dei tem feito por graça de Deus. Apenas devo afirmar que a finalidade a que o Opus Dei aspira é favorecer a procura da santidade e o exercício do apostolado por parte dos cristãos que vivem em meio do mundo, seja qual for seu estado ou condição.

A Obra nasceu a fim de contribuir para que esses cristãos, inseridos no tecido da sociedade civil — com sua família, suas amizades, seu trabalho profissional, suas aspirações nobres — compreendam que a sua vida, tal como é, pode vir a ser ocasião de um encontro com Cristo: quer dizer, que é um caminho de santidade e de apostolado. Cristo está presente em qualquer tarefa humana honesta: a vida de um simples cristão — que talvez a alguns pareça vulgar e acanhada — pode e deve ser uma vida santa e santificante.

Por outras palavras: Para seguir a Cristo, para servir a Igreja, para ajudar os outros homens as reconhecerem seu destino eterno, não é indispensável abandonar o mundo ou afastar-se dele, nem mesmo é preciso dedicar-se a uma atividade eclesiástica; a condição necessária e suficiente é esta: que cada um cumpra a missão que lhe foi confiada por Deus, no lugar e no ambiente queridos por sua Providência.

A maior parte dos cristãos recebe de Deus a missão de santificar o mundo de dentro para fora, permanecendo em meio das estruturas temporais; tendo isto em conta, o Opus Dei dedica-se a fazê-los descobrir essa missão divina, mostrando-lhes que a vocação humana — a vocação profissional, familiar e social — não se opõe à vocação sobrenatural: pelo contrário, é parte integrante dela.

O Opus Dei tem como missão única e exclusiva a difusão desta mensagem — que é uma mensagem evangélica — entre todas as pessoas que vivem e trabalham no mundo, em qualquer ambiente ou profissão. E, àqueles que entendem este ideal de santidade, a Obra proporciona os meios espirituais e a formação doutrinal, ascética e apostólica necessária para realizá-lo na própria vida.

Os sócios do Opus Dei não atuam em grupo, mas sim individualmente, com liberdade e responsabilidade pessoais. Por isso, o Opus Dei não é uma organização fechada ou que de algum modo reúna seus sócios para os isolar dos outros homens. As atividades corporativas, que são as únicas que a Obra dirige, estão abertas a todo tipo de pessoas, sem discriminação de espécie alguma: nem social, nem cultural, nem religiosa. E os sócios, precisamente porque devem santificar-se no mundo, colaboram sempre com todas as pessoas com quem se relacionam pelo seu trabalho e pela sua participação na vida cívica.

É parte essencial do espírito cristão não só viver em união com a Hierarquia ordinária — O Romano Pontífice e o Episcopado — mas também sentir a unidade com os demais irmãos na fé. Há muito tempo que penso que um dos maiores males da Igreja nesta época é o fato de muitos católicos desconhecerem o que fazem e pensam os católicos de outros países ou de outros ambientes sociais. É necessário atualizar essa fraternidade, que os primeiros cristãos viviam tão profundamente. Assim nos sentiremos unidos, amando ao mesmo tempo a variedade das vocações pessoais; assim também se evitarão não poucos juízos injustos e ofensivos, propalados por determinados pequenos grupos — em nome do catolicismo — contra seus irmãos na fé, que na realidade agem retamente e com sacrifício, consideradas as circunstâncias particulares do seu país.

É importante que cada um procure ser fiel ao seu próprio chamado divino, de modo a não deixar de trazer à Igreja o que implica o carisma recebido de Deus. O que é próprio dos sócios do Opus Dei — cristãos correntes — é santificar o mundo de dentro para fora, participando nas tarefas humanas as mais diversas. Como o fato de pertencer à Obra não altera em nada sua posição no mundo, eles colaboram de maneira adequada em cada caso,nas celebrações religiosas coletivas, na vida paroquial, etc. Também neste sentido são cidadãos correntes, que querem ser bons católicos.

Contudo, geralmente os sócios da Obra não costumam trabalhar em atividades confessionais. Só em casos excepcionais, quando a Hierarquia o pede expressamente, é que um membro da Obra colabora em tarefas eclesiásticas. Não há nessa atitude qualquer desejo de singularizar-se, e menos ainda menosprezo pelas atividades confessionais; há somente a decisão de ocupar-se do que é próprio da vocação para o Opus Dei. Já há muitos religiosos e clérigos, e também muitos leigos cheios de zelo que desempenham essas atividades, dedicando-lhes seus melhores esforços.

O que caracteriza os sócios da Obra, a tarefa a que se sabem chamados por Deus, é outra. Dentro da chamado universal à santidade, os sócios do Opus Dei recebem ademais um chamado especial para procurarem livre e responsavelmente chegar à santidade e fazer apostolado em meio do mundo, comprometendo-se a viver um espírito específico e a receber ao longo de toda a sua vida uma formação peculiar. Se descurassem seu trabalho no mundo, para se ocuparem das tarefas eclesiásticas, tornariam ineficazes os dons divinos, e, atraídos por uma eficácia pastoral imediata, causariam real prejuízo à Igreja: porque não haveria tantos cristãos santificando-se em todas as profissões e ofícios da sociedade civil, no campo imenso do trabalho secular.

Aliás, a exigente necessidade da contínua formação profissional e da formação religiosa, somada ao tempo dedicado pessoalmente à piedade, à oração e ao cumprimento sacrificado dos deveres de estado, preenche a vida inteira: não há horas de folga.

Sabemos que pertencem ao Opus Dei homens e mulheres de todas as condições sociais, solteiros ou casados. Qual é, então, o elemento comum que caracteriza a vocação para a Obra? Que compromissos assume cada sócio para realizar os fins do Opus Dei?

Vou dizê-lo em poucas palavras: é procurar chegar à santidade em meio do mundo, no meio da rua. Quem recebe de Deus a vocação específica para o Opus Dei sabe — e vive — que deve alcançar a santidade em seu próprio estado, no exercício de seu trabalho, manual ou intelectual. Disse sabe e vive, porque não se trata de aceitar um simples postulado teórico, mas de realizá-lo dia a dia, na vida ordinária.

Querer atingir a santidade — apesar dos erros e das misérias pessoais, que hão de durar enquanto vivermos — significa esforçar-se, com a graça de Deus, por viver a caridade, plenitude da lei e vínculo da perfeição. A caridade não é algo abstrato; significa entrega real e total ao serviço de Deus e de todos os homens: desse Deus que nos fala no silêncio da oração e no rumor do mundo; desses homens cuja existência se entrecruza com a nossa.

Vivendo a caridade — o Amor —, vivem-se todas as virtudes humanas e sobrenaturais do cristão, que formam uma unidade e que não se podem reduzir a enumerações exaustivas. A caridade exige que se viva a justiça, a solidariedade, a responsabilidade familiar, a alegria, a castidade, a amizade…

Logo se vê que a prática destas virtudes leva ao apostolado. Mais ainda: já é apostolado. Com efeito, quando se procura viver assim em meio do trabalho diário, a conduta cristã se transforma em bom exemplo, em testemunho, em ajuda concreta e eficaz; aprende-se a seguir as pegadas de Cristo, que coepit facere et docere (At 1, 1), que começou a fazer e a ensinar, unindo ao exemplo a palavra. Por isso chamei a este trabalho, faz quarenta anos, apostolado de amizade e de confidência.

Todos os sócios do Opus Dei têm este mesmo anseio de santidade e de apostolado. Por isso, na Obra não há graus ou categorias de sócios. O que existe é uma multiplicidade de situações pessoais — a situação que cada um tem no mundo — a que se acomoda a mesma e única vocação específica e divina: o chamado para que se entreguem, para que se empenhem pessoalmente , no cumprimento da vontade de Deus que lhe é manifestada.

Como se vê, o fenômeno pastoral do Opus Dei é algo que nasce de baixo para cima, isto é, a partir da vida corrente do cristão que vive e trabalha junto dos outros homens. Não está na linha da mundanização — dessacralização — da vida monástica ou religiosa; não é a última fase do movimento de aproximação dos religiosos ao mundo.

Quem recebe a vocação para o Opus Dei adquire uma nova visão das coisas que o rodeiam: luzes novas em suas relações sociais, em sua profissão, em suas preocupações, em suas tristezas e suas alegrias; mas nem por um instante deixa de viver em meio de tudo isso. E não é cabível, de maneira nenhuma, falar de adaptação ao mundo ou à sociedade moderna: ninguém se adapta ao que tem como próprio; no que se tem como próprio, se está. A vocação recebida é igual à que surgia na alma daqueles pescadores, camponeses comerciantes ou soldados que, sentados ao pé de Jesus Cristo na Galiléia, Lhe ouviam dizer: sede perfeitos, como vosso Pai celestial é perfeito (Mt 5, 48).

Esta perfeição, repito — a perfeição procurada pelo sócio do Opus Dei —, é a perfeição própria do cristão, sem mais: quer dizer, aquela a que todo cristão é chamado e que implica viver integralmente as exigências da fé. Não nos interessa a perfeição evangélica, que se considera própria dos religiosos e de algumas instituições assemelhadas aos religiosos; e menos ainda nos interessa a chamada vida de perfeição evangélica, que se refere canonicamente ao estado religioso.

O caminho da vocação religiosa me parece abençoado e necessário na Igreja; e não teria o espírito da Obra quem o não estimasse. Mas esse caminho não é o meu, nem o dos sócios do Opus Dei. Pode-se dizer que ao virem para o Opus Dei, todos e cada um de seus sócios o fizeram com a condição explícita de não mudar de estado. Nossa característica específica é santificar o estado que temos no mundo, santificando-se cada um dos sócios no lugar de seu encontro com Cristo: este é o compromisso assumido por cada sócio para realizar os fins do Opus Dei.

Esclarecido esse ponto, gostava de lhe perguntar o seguinte: quais são as características da formação espiritual dos sócios, que fazem com que fique excluído todo tipo de interesse temporal no fato de se pertencer ao Opus Dei?

Todo interesse que não seja puramente espiritual fica radicalmente excluído, porque a Obra pede muito — desprendimento, sacrifício, abnegação, trabalho sem descanso a serviço das almas — e não dá nada. Quero dizer que não dá nada no plano dos interesses temporais; porque, no plano da vida espiritual, dá muito: dá meios para combater e vencer na vida ascética, encaminhada por caminhos de oração, ensina a tratar a Jesus como um irmão, a ver Deus em todas as circunstâncias da vida, a sentir-se filho de Deus e, por conseguinte, comprometido a difundir a sua doutrina.

Uma pessoa que não progrida pelo caminho da vida interior, até chegar a compreender que vale a pena dar-se de todo, entregar a própria vida a serviço do Senhor, não pode perseverar no Opus Dei, porque a santidade não é um rótulo, mas uma profunda exigência.

Por outro lado, o Opus Dei não tem nenhuma atividade de fins políticos, econômicos ou ideológicos: nenhuma ação temporal. Suas únicas atividades são a formação sobrenatural de seus sócios e as obras de apostolado, quer dizer, a contínua atenção espiritual prestada a cada um dos sócios, e as obras corporativas de assistência, de beneficência, de educação, etc.

Os sócios do Opus Dei unem-se somente para seguir um caminho de santidade, bem definido, e colaborar em determinadas obras de apostolado. Seus compromissos recíprocos excluem qualquer tipo de interesse terreno pelo simples fato de que, nesse campo, todos os sócios do Opus Dei são livres e, portanto, cada um segue o seu próprio caminho, com finalidades e interesses diferentes e por vezes contrapostos.

Como conseqüência do fim exclusivamente divino da Obra, seu espírito é um espírito de liberdade, de amor à liberdade pessoal de todos os homens. E, como esse amor à liberdade é sincero e não um mero enunciado teórico, nós amamos a necessária conseqüência da liberdade: quer dizer, o pluralismo. No Opus Dei, o pluralismo é querido e amado; não simplesmente tolerado e de modo algum dificultado. Quando me é dado observar entre os sócios da Obra tantas idéias diversas, tantas atitudes diferentes — no que diz respeito às questões políticas, econômicas, sociais ou artísticas, etc. —, esse espetáculo me dá alegria porque é sinal de que tudo está funcionando diante de Deus como deve ser.

Unidade espiritual e variedade nas coisas temporais são compatíveis quando não reinam o fanatismo e a intolerância; e, sobretudo, quando se vive de fé e se sabe que nós, os homens, estamos unidos não por meros laços de simpatia ou de interesse, mas pela ação de um mesmo Espírito que, fazendo-nos irmãos de Cristo, nos conduz a Deus Pai.

Um verdadeiro cristão nunca pensa que a unidade na fé, a fidelidade ao Magistério e à Tradição da Igreja, bem como a preocupação de fazer chegar aos outros a mensagem salvadora de Cristo, estejam em dissonância com a variedade de atitudes nas coisas que Deus deixou, como se costuma dizer, à livre discussão dos homens. Mais ainda: tem plena consciência de que essa variedade faz parte do plano divino, é querida por Deus, que reparte seus dons e suas luzes conforme deseja. O cristão deve amar os outros e portanto respeitar as opiniões contrárias às suas, e conviver em plena fraternidade com aqueles que pensam de outro modo.

Precisamente porque os sócios da Obra se formam de acordo com este espírito, é impossível que alguém pense em se aproveitar do fato de pertencer ao Opus Dei para obter vantagens pessoais, ou para tentar impor aos outros opções políticas ou culturais: porque os outros não o suportariam, e o levariam a mudar de atitude ou a abandonar a Obra. Este é um ponto em que ninguém no Opus Dei poderá permitir jamais o menor desvio, porque deve defender, não apenas a sua liberdade pessoal, mas também a natureza sobrenatural do labor a que se entregou. Penso, por isso, que a liberdade e a responsabilidade pessoais são a melhor garantia da finalidade sobrenatural da Obra de Deus.

Talvez se possa pensar que, até agora, o Opus Dei se viu favorecido pelo entusiasmo dos primeiros sócios, não obstante serem já vários milhares. Existe alguma medida que garanta a continuidade da Obra, em face do risco, conatural a toda instituição, de um possível esfriamento do fervor e do impulso iniciais?

A Obra não se baseia no entusiasmo, mas na fé. Os anos do começo — longos anos — foram muito duros, e só se viam dificuldades. O Opus Dei foi para a frente por graça divina, e pela oração e sacrifício dos primeiros, sem meios humanos. Só havia juventude, bom-humor e o desejo de fazer a vontade de Deus.

Desde o princípio, a arma do Opus Dei foi sempre a oração, a vida dedicada, a silenciosa renúncia a tudo quanto é egoísmo, para servir as almas. Como lhe dizia antes, vem-se ao Opus Dei para receber um espírito que leva precisamente a dar tudo, enquanto se continua trabalhando profissionalmente por amor a Deus e, por Ele, às suas criaturas.

A garantia de que não se verifique um esfriamento é que meus filhos não percam nunca esse espírito. Sei que as obras humanas se desgastam com o tempo; mas isso não acontece com as obras divinas, a não ser que os homens as rebaixem. Só quando se perde o impulso divino é que vem a corrupção, a decadência. No nosso caso, salta à vista a Providência do Senhor, que — em tão pouco tempo, quarenta anos — faz com que seja recebida e efetivada esta específica vocação divina, entre cidadãos comuns iguais aos outros, de tão diversas nações.

O fim do Opus Dei, repito uma vez mais, é a santidade de cada um de seus sócios, homens e mulheres, que continuam no lugar que no mundo ocupavam. Se alguém não vier ao Opus Dei para ser santo, apesar dos pesares — isto é, apesar das misérias próprias, dos erros pessoais — irá embora logo. Penso que a santidade chama a santidade, e peço a Deus que no Opus Dei não falte nunca esta convicção profunda, esta vida de fé. Como vê, não confiamos exclusivamente nas garantias humanas ou jurídicas. As obras inspiradas por Deus movem-se ao ritmo da graça. Minha única receita é esta: sermos santos, queremos ser santos, com santidade pessoal.

O senhor tem falado do trabalho com freqüência. Poderia dizer que lugar ocupa o trabalho na espiritualidade do Opus Dei?

A vocação para o Opus Dei não altera nem modifica de maneira nenhuma a condição, o estado de vida, de quem a recebe. E, como a condição humana é o trabalho, a vocação sobrenatural para a santidade e para o apostolado segundo o espírito do Opus Dei confirma a vocação humana para o trabalho. A imensa maioria dos sócios da Obra são leigos, simples cristãos; a sua condição é a de quem tem uma profissão, um ofício, uma ocupação, muitas vezes absorvente, com a qual ganha a vida, mantém a família, contribui para o bem comum, desenvolve a personalidade.

A vocação para o Opus Dei vem confirmar tudo isso, a tal ponto que um dos sinais essenciais dessa vocação é precisamente viver no mundo e nele desempenhar um trabalho — contando, volto a dizer, com as próprias imperfeições pessoais — da maneira mais perfeita possível, tanto do ponto de vista humano quanto do sobrenatural. Quer dizer: um trabalho que contribua eficazmente para a edificação da cidade terrena — e que, por conseguinte seja feito com competência e com espírito de serviço — e para a consagração do mundo, sendo, portanto, santificante e santificado.

Os que querem viver com perfeição sua fé e praticar o apostolado segundo o espírito do Opus Dei, devem santificar-se com a profissão, santificar a profissão e santificar os outros com a profissão. Vivendo assim, sem se distinguirem portanto dos outros cidadãos, iguais àqueles que com eles trabalham, esforçar-se-ão paro identificar-se com Cristo, imitando seus trinta anos de trabalho na oficina de Nazaré.

Porque essa tarefa habitual é, não apenas o âmbito em que se devem santificar, mas também a própria matéria de sua santidade: no meio dos incidentes do dia a dia, eles descobrem a mão de Deus e encontram um estímulo para sua vida de oração. Os próprios afazeres profissionais põem-nos em contacto com outras pessoas — parentes, amigos, colegas — e com os grandes problemas que afetam a sociedade ou o mundo inteiro, deparando-lhes assim a ocasião de viverem essa entrega ao serviço dos outros, que é essencial aos cristãos. Assim, devem esforçar-se por dar um verdadeiro e autêntico testemunho de Cristo, para que todos aprendam a conhecer e a amar o Senhor, a descobrir que a vida normal no mundo, o trabalho de todos os dias, pode ser um encontro com Deus.

Por outras palavras: a santidade e o apostolado unem-se à vida dos sócios da Obra constituindo com ela uma só coisa; e por isso o trabalho é o eixo da sua vida espiritual. Sua entrega a Deus se insere no trabalho que desenvolviam antes de virem para a Obra e que continuam desempenhando depois.

Quando, nos primeiros anos de minha atividade pastoral, comecei a pregar essas coisas, algumas pessoas não me entenderam, outras se escandalizaram; estavam acostumadas a ouvir falar do mundo sempre em sentido pejorativo. O Senhor me havia feito entender — e eu procurava dá-lo a entender aos outros — que o mundo é bom, porque as obras de Deus são sempre perfeitas, e que fomos nós, os homens, que fizemos o mundo mau pelo pecado.

Dizia então, e continuo dizendo agora que temos de amar o mundo, porque no mundo encontramos a Deus, porque, nas ocorrências e acontecimentos do mundo, Deus se manifesta a nós e a nós se revela.

O mal e o bem se misturam na história humana, e por isso o cristão deve ser uma criatura capaz de discernir; mas esse discernimento não o deve levar nunca a negar a bondade das obras de Deus; pelo contrário, deve levá-lo a reconhecer o divino que se manifesta no humano, mesmo por trás de nossas próprias fraquezas. Um bom lema para a vida cristã se pode encontrar naquelas palavras do Apóstolo; todas as coisas são vossas, e vós de Cristo, e Cristo de Deus (1 Cor. 3, 22), afim de se realizarem assim os desígnios desse Deus que quer salvar o mundo.

Sabemos que esta sua doutrina sobre o matrimônio como caminho de santidade não é novidade em sua pregação. Já em 1934, quando escreveu "Considerações espirituais", o senhor insistia em que era preciso ver o matrimônio como uma vocação. Mas nesse livro, e depois em "Caminho", o senhor escreveu também que "o matrimônio é para os soldados e não para o estado-maior de Cristo". Poderia explicar-nos como se conciliam estes dois aspectos?

No espírito e na vida do Opus Dei, não houve nunca impedimento algum para conciliar esses dois aspectos. Aliás, convém recordar que a maior excelência do celibato — por motivos espirituais — não é uma opinião teológica pessoal, mas sim doutrina de fé da Igreja.

Quando eu escrevi aquelas frases, lá pelos idos de 1930, no ambiente católico — na vida pastoral concreta — havia uma tendência para promover a busca da perfeição cristã entre os jovens fazendo-os apreciar apenas o valor sobrenatural da virgindade, e deixando na sombra o valor do matrimônio cristão como outro caminho de santidade.

Normalmente, nos centros de ensino, não se formava a juventude de maneira que ela apreciasse, como merece, a dignidade do matrimônio. Ainda hoje, nos retiros espirituais que costumam dar aos alunos dos últimos anos do Secundário, é freqüente oferecerem-lhes mais elementos para considerarem a sua possível vocação religiosa do que o seu encaminhamento para o matrimônio, igualmente possível. E não faltam — embora sejam cada vez menos — os que depreciam a vida conjugal, configurando-a aos olhos dos jovens como algo que a Igreja simplesmente tolera, como se não permitisse aspirar seriamente a santidade.

No Opus Dei sempre temos procedido de outro modo e — deixando bem clara a razão de ser e a excelência do celibato apostólico — indicamos o matrimônio como caminho divino na terra.

A mim não me assusta o amor humano, o amor santo de meus pais, de que o Senhor se valeu para me dar a vida. Esse amor, eu abençôo com as duas mãos. Os cônjuges são os ministros e a própria matéria do sacramento do Matrimônio, como o Pão e o Vinho são a matéria da Eucaristia. Por isso gosto de todas as canções ao amor limpo dos homens, que são para mim quadras de amor humano em estilo divino. E, ao mesmo tempo, digo sempre que os que seguem o caminho vocacional do celibato apostólico não são solteirões que não compreendem ou não apreciam o amor; pelo contrário, a explicação de suas vidas está na realidade desse Amor divino — gosto de escrevê-lo com maiúscula — que é a própria essência de toda a vocação cristã.

Não há qualquer contradição entre ter esse apreço pela vocação matrimonial e compreender a maior excelência da vocação para o celibato propter regnum coelorum (Mt 19, 12), por amor do reino dos céus. Estou convencido de que qualquer cristão que procure conhecer, aceitar e amar a doutrina da Igreja, entenderá perfeitamente como estas duas coisas são compatíveis. E se também procurar conhecer, aceitar e amar sua própria vocação pessoal. Quer dizer: se tiver fé e viver de fé.

Quando eu escrevi que o matrimônio é para os soldados, não fazia mais do que descrever o que sucedeu sempre na Igreja. Como sabem, os Bispos — que formam o Colégio Episcopal, cuja cabeça é o Papa, e com ele governam a Igreja — são escolhidos entre os que vivem o celibato. O mesmo acontece nas igrejas orientais, onde se admitem os presbíteros casados. Além disso, é fácil de compreender e verificar que os não casados têm, de fato, maior liberdade de coração e de movimentos para se dedicarem estavelmente a dirigir e a manter empreendimentos apostólicos, mesmo no apostolado dos leigos. Isto não quer dizer que os outros leigos não possam fazer ou não façam de fato um apostolado esplendido e de primeira importância; quer dizer somente que há diversidade de funções, diversas dedicações em lugares de diferente responsabilidade.

Num exército — e era só isso o que a comparação pretendia exprimir — os soldados são tão necessários quanto o estado-maior, e podem ser mais heróicos e merecer mais glória. Em resumo: há diversas tarefas e todas são importantes e dignas. O que sobretudo interessa é a correspondência de cada um à sua própria vocação. O mais perfeito para cada um — sempre e exclusivamente — é fazer a vontade de Deus.

Por isso, um cristão que procura santificar-se no estado matrimonial e é consciente da grandeza da sua própria vocação, sente espontaneamente uma especial veneração e um profundo afeto pelos que são chamados ao celibato apostólico; e, quando algum de seus filhos, pela graça do Senhor, empreende esse caminho, alegra-se sinceramente. E acaba amando mais ainda sua própria vocação matrimonial, que permitiu oferecer a Jesus Cristo — o grande Amor de todos, solteiros ou casados — os frutos do amor humano.

Ao longo desta entrevista, tem havido ocasião de comentar aspectos importantes da vida humana e especificamente da vida da mulher, e de reconhecer como o espírito do Opus Dei os valoriza. Para terminar, poderia dizer-nos como considera que se deve promover o papel da mulher na vida da Igreja?

Não posso ocultar que, ao responder a uma pergunta deste tipo, sinto a tentação — contrária ao meu proceder normal — de fazê-lo de um modo polêmico: porque há pessoas que empregam essa linguagem de um modo clerical, usando a palavra Igreja como sinônimo de algo que pertence ao clero, à Hierarquia eclesiástica. E assim, por participação na vida da Igreja entendem, só ou principalmente, ajuda prestada à vida paroquial, a colaboração em associações "com mandato" da Hierarquia, a assistência ativa às funções litúrgicas e coisas semelhantes.

Quem pensa assim esquece na prática — embora talvez o proclame na teoria — que a Igreja é a totalidade do Povo de Deus, o conjunto de todos os cristãos: que, portanto, onde estiver um cristão que se esforce por viver em nome de Jesus Cristo, aí está presente a Igreja.

Com isto não pretendo desvalorizar a importância da colaboração que a mulher pode prestar à vida da estrutura eclesiástica. Pelo contrário, considero-a imprescindível. Tenho dedicado a minha vida a defender a plenitude da vocação cristã do laicato, dos homens e das mulheres que vivem em meio do mundo, e, por conseguinte, a procurar o pleno reconhecimento teológico e jurídico de sua missão na Igreja e no mundo.

Só quero fazer notar que há quem promova uma redução injustificada dessa colaboração; e afirmar que o simples cristão, homem ou mulher, só pode cumprir sua missão específica, também a que lhe compete dentro da estrutura eclesial, desde que não se clericalize; e continue sendo secular, corrente, pessoa que vive no mundo e que participa dos anseios do mundo.

Compete aos milhões de mulheres e de homens cristãos que enchem a terra, levar Cristo a todas as atividades humanas, anunciando com suas vidas que Cristo ama a todos e quer salvar a todos. Por isso, a melhor maneira de participarem na vida da Igreja, a mais importante e a que, pelo menos, tem de estar pressuposta em todas as outras, é a de serem integralmente cristãos no lugar onde estão na vida, onde sua vocação humana os colocou.

Como me emociona pensar em tantos cristãos, homens e mulheres, que, talvez sem se proporem fazê-lo de maneira específica, vivem com simplicidade a sua vida ordinária, procurando encarnar nela a Vontade de Deus! Fazer com que eles tomem consciência da sublimidade de sua vida, revelar-lhes que isso, aparentemente sem importância, tem um valor de eternidade, ensinar-lhes a escutar mais atentamente a voz de Deus, que lhes fala através de acontecimentos e situações — é disso que a Igreja tem hoje premente necessidade, porque é nesse sentido que Deus a está ungindo.

Cristianizar o mundo inteiro a partir de dentro, mostrando que Jesus Cristo redimiu toda a humanidade — essa é a missão do cristão. e a mulher participará nela de maneira que lhe é própria, tanto no lar quanto nas tarefas que desempenha, realizando as virtualidades peculiares que lhe cabem.

O principal é, pois, que, como Santa Maria — mulher, Virgem e Mãe — vivam voltadas para Deus, pronunciando esse fiat mihi secundum verbum tuum (Lc 1, 38), faça-se em mim segundo a tua palavra — do qual depende a fidelidade à vocação pessoal, única e intransferível em cada caso, e que nos fará cooperadores da obra de salvação realizada por Deus em nós e no mundo inteiro.

O autêntico sentido cristão que professa a ressurreição de toda a carne — sempre combateu, como é lógico, a desencarnação , sem medo de ser tachado de materialista. É lícito, portanto, falar de um materialismo cristão, que se opõe audazmente aos materialismos cerrados ao espírito.

O que são os sacramentos — vestígios da Encarnação do Verbo, como afirmaram os antigos — senão a mais clara manifestação deste caminho escolhido por Deus para nos santificar e levar ao Céu? Não vêem que cada sacramento é o amor de Deus, com toda a sua força criadora e redentora, dando-se a nós através de meios materiais? O que é a Eucaristia — já iminente — senão o Corpo e Sangue adoráveis do nosso Redentor, que se oferece a nós através da humilde matéria deste mundo — vinho e pão — , através dos elementos da natureza, cultivados pelo homem, como o quis recordar o último Concílio Ecumênico?

Assim se compreende, meus filhos, que o Apóstolo chegasse a escrever: Todas as coisas são vossas, vós sois de Cristo e Cristo é de Deus. Trata-se de um movimento ascendente que o Espírito Santo, difundido em nossos corações, quer provocar no mundo; da terra até à glória do Senhor. E para ficar bem claro que — nesse movimento — se incluía também o que parece mais prosaico, São Paulo escreveu ainda: quer comais, quer bebais, fazei tudo para aglória de Deus.

Esta doutrina da Sagrada Escritura, que se encontra — como sabem — no próprio cerne do espírito do Opus Dei, deve levar-nos a realizar o trabalho com perfeição, a amar a Deus e aos homens pondo amor nas pequenas coisas da jornada habitual, descobrindo esse algo divino que se encerra nos detalhes. Que bem ficam aqui aqueles versos do poeta de Castela!: Despacito, y buena letra: el hacer las cosas bien importa más que el hacerlas1.

Eu lhes asseguro, meus filhos, que quando um cristão desempenha com amor a mais intranscendente das ações diárias, está desempenhando algo donde transborda a transcendência de Deus. Por isso tenho repetido, com insistente martelar, que a vocação cristã consiste em transformar em poesia heróica a prosa de cada dia. Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir-se o céu e a terra. Mas não: onde de verdade se juntam é no coração, quando se vive santamente a vida diária…

Viver santamente a vida diária, como acabo de dizer. E com estas palavras me refiro a todo o programa dos afazeres cristãos. Portanto, deixem-se de sonhos, de falsos idealismos, de fantasias, disso que costumo chamar de mística do oxalá: oxalá não me tivesse casado, oxalá não tivesse esta profissão, oxalá tivesse mais saúde, oxalá fosse jovem, oxalá fosse velho…; e atenham-se, pelo contrário, sobriamente, à realidade mais material e imediata, que é onde o Senhor está: olhai minhas mãos e meus pés — disse Jesus ressuscitado — , sou eu mesmo.Apalpaie vede que um espírito não tem carne e ossos, como vedes que eu tenho.

São muitos os aspectos do ambiente secular que se iluminam a partir destas verdades. Pensem, por exemplo, na atuação que têm como cidadãos na vida civil. Um homem ciente de que o mundo — e não só o templo — é o lugar do seu encontro com Cristo, ama este mundo, procura adquirir um bom preparo intelectual e profissional, vai formando — com plena liberdade — seus próprios critérios sobre os problemas do meio em que se desenvolve; e, por conseqüência, toma suas próprias decisões, as quais, por serem decisões de um cristão, procedem além disso de uma reflexão pessoal, que tenta humildemente captar a vontade de Deus nesses detalhes pequenos e grandes da vida.

Continuo mantendo a esperança — porque corresponde a um critério justo e à realidade vigente em muitos países — de que um dia o Estado Espanhol contribua, por sua parte, para aliviar os ônus de uma tarefa que não tem em vista proveito privado algum, pois — muito pelo contrário — , por estar totalmente votada ao serviço da sociedade, procura trabalhar com eficácia em prol da prosperidade presente e futura da nação.

E agora, filhos e filhas, permitam que me detenha em outro aspecto — particularmente entranhável — da vida ordinária. Refiro-me ao amor humano, ao amor limpo entre um homem e uma mulher, ao noivado, ao matrimônio. Devo dizer uma vez mais que esse santo amor humano não é algo permitido, tolerado, ao lado das verdadeiras atividades do espírito, como poderiam insinuar os falsos espiritualismos a que antes aludia. Faz quarenta anos que venho pregando, de palavra e por escrito, exatamente o contrário; e já o vão entendendo os que não o compreendiam.

O amor que conduz ao matrimônio e à família pode ser também um caminho divino, vocacional, maravilhoso, por onde corra, como um rio em seu leito, uma completa dedicação ao nosso Deus. Já o lembrei: realizem as coisas com perfeição, ponham amor nas pequenas atividades da jornada; Descubram — insisto — esse algo divino que nos detalhes se encerra: toda esta doutrina encontra lugar especial no espaço vital em que se enquadra o amor humano.

Já o sabem os professores, os alunos e todos os que dedicam seu trabalho à Universidade de Navarra: eu encomendei os amores de todos a Santa Maria, Mãe do Amor Formoso. E ai está a ermida que construímos com devoção, no campus universitário, para receber de todos as orações e a oblação desse maravilhoso e limpo amor, que Ela abençoa.

Não sabeis que vosso corpo é templo do Espírito Santo, recebido de Deus e que não vos pertenceis? Quantas vezes responderão, diante da imagem da Virgem Maria, da mãe do Amor Formoso, com uma afirmação cheia de júbilo à pergunta do Apóstolo: sim, nós o sabemos e queremos vivê-lo com tua ajuda poderosa, ó Virgem Mãe de Deus!

A oração contemplativa surgirá em todos sempre que meditarem nesta realidade impressionante: algo tão material como meu corpo foi escolhido pelo Espírito Santo para estabelecer sua morada…, não pertenço mais a mim…, meu corpo e minha alma — todo o meu ser — são de Deus… E essa oração será rica em resultados práticos, derivados da grande conseqüência que o próprio Apóstolo propõe: glorificai a Deus em vosso corpo.

Referências da Sagrada Escritura
Referências da Sagrada Escritura
Referências da Sagrada Escritura
Referências da Sagrada Escritura
Notas
1

Devagarinho,, e boa letra; que fazer as coisas bem, importa mais que fazê-las. A. Machado, Poesias Completas, CLXI. — Proverbios y cantares, XXIV. Espasa Calpe, Madrid, 1940. (N. do T.)

Referências da Sagrada Escritura
Referências da Sagrada Escritura