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Há 4 pontos em "Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá ", cuja matéria seja Vocação cristã  → unidade de vida.

Acabam de escutar a leitura solene dos dois textos da Sagrada Escritura correspondentes à Missa do XXI domingo depois de Pentecostes. Tendo ouvido a Palavra de Deus, ficam já situados no âmbito em que querem mover-se as palavras que agora vou dizer: palavras de sacerdote, pronunciadas perante uma grande família de filhos de Deus em sua Igreja Santa. Palavras, portanto, que desejam ser sobre-naturais, pregoeiras da grandeza de Deus e de suas misericórdias para com os homens: palavras que a todos preparam para a impressionante Eucaristia, que hoje celebramos no campus da Universidade de Navarra.

Considerem por alguns instantes o fato que acabo de mencionar. Celebramos a Sagrada Eucaristia, o sacrifício sacramental do Corpo e Sangue do Senhor, esse mistério de fé que reúne em si todos os mistérios do Cristianismo. Celebramos, portanto, a ação mais sagrada e transcendente que os homens, pela graça de Deus, podem realizar nesta vida. Comungar no Corpo e no Sangue do Senhor vem a ser, em certo sentido, como que desligar-nos de nossos liames de terra e de tempo, para estarmos já com Deus no Céu, onde o próprio Cristo nos enxugará as lágrimas dos olhos e onde não haverá morte, nem pranto, nem gritos de fadiga, porque o mundo velho já terá terminado.

Esta verdade tão consoladora e profunda, este significado escatológico da Eucaristia, como os teólogos costumam denominá-lo, poderia, no entanto, ser mal entendido: e assim aconteceu sempre que se quis apresentar a existência cristã como algo unicamente espiritual — isto é, espiritualista — , próprio de pessoas puras, extraordinárias, que não se misturam com as coisas desprezíveis deste mundo ou que, quando muito, as toleram como algo necessariamente justaposto ao espírito, enquanto aqui vivemos.

Quando se vêem as coisas deste modo, o templo se converte, por antonomásia. no lugar da vida cristã; e, nessa altura, ser cristão é ir ao templo, participar em cerimônias sagradas, incrustar-se numa sociologia eclesiástica, numa espécie de mundo segregado, que se apresenta a si mesmo como ante-câmara do céu, enquanto o mundo comum vai percorrendo o seu caminho. Assim, a doutrina do Cristianismo, a vida da graça, andariam como que roçando o buliçoso avançar da história humana, mas sem se encontrarem com ele.

Nesta manhã de Outubro, enquanto nos preparamos para adentrar-mos no memorial da Páscoa do Senhor, respondemos simplesmente não! a essa visão deformada do Cristianismo. Reparem, por um momento, em como está em emoldurada a nossa Eucaristia, a nossa Ação de Graças: encontramo-nos num templo singular; poderia dizer-se que a nave é o campus universitário; o retábulo, a Biblioteca da Universidade; além, as máquinas que levantam novos edifícios; e, por cima, o céu de Navarra…

Será que esta enumeração não está confirmando, de uma forma plástica e inesquecível, que é a vida corrente o verdadeiro lugar da existência cristã? Meus filhos: aí onde estão nossos irmãos os homens, aí onde estão as nossas aspirações, nosso trabalho, nossos amores — aí está o lugar do nosso encontro cotidiano com Cristo. Em meio das coisas mais materiais da terra é que nós devemos santificar-nos, servindo a Deus e a todos os homens.

Tenho-o ensinado constantemente com palavras da Escritura Santa: o mundo não é ruim, porque saiu das mãos de Deus, porque é criatura dEle, porque Javé olhou para ele e viu que era bom. Nós, os homens, é que o fazemos ruim e feio, com nossos pecados e nossas infidelidades. Não duvidem, meus filhos; qualquer modo de evasão das honestas realidades diárias é para os homens e mulheres do mundo coisa oposta à vontade de Deus.

Pelo contrário, devem compreender agora — com uma nova clareza — que Deus os chama a servi-Lo em e a partir das tarefas civis, materiais, seculares da vida humana. Deus nos espera cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Não esqueçamos nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir.

Eu costumava dizer àqueles universitários e àqueles operários que me procuravam lá pela década de 30, que tinham de saber materializar a vida espiritual. Queria afastá-los, assim, da tentação, tão freqüente nessa época e agora, de levar uma vida dupla: a vida interior, a vida de relação com Deus, por um lado; e por outro, diferente e separada, a vida familiar, profissional e social, cheia de pequenas realidades terrenas.

Não, meus filhos! Não pode haver uma vida dupla, não podemos ser como esquizofrênicos, se queremos ser cristãos. Há uma única vida, feita de carne e espírito, e essa é que tem de ser — na alma e no corpo — santa e plena de Deus, desse Deus invisível, que nós encontraremos nas coisas mais visíveis e materiais.

Não há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar o Senhor em nossa vida de todos os dias, ou não O encontraremos nunca. Por isso, posso afirmar que nossa época precisa devolver à matéria e às situações aparentemente mais vulgares seu nobre e original sentido: pondo-as ao serviço do Reino de Deus, espiritualizando-as, fazendo delas meio e ocasião para o nosso encontro contínuo com Jesus Cristo.

O autêntico sentido cristão que professa a ressurreição de toda a carne — sempre combateu, como é lógico, a desencarnação , sem medo de ser tachado de materialista. É lícito, portanto, falar de um materialismo cristão, que se opõe audazmente aos materialismos cerrados ao espírito.

O que são os sacramentos — vestígios da Encarnação do Verbo, como afirmaram os antigos — senão a mais clara manifestação deste caminho escolhido por Deus para nos santificar e levar ao Céu? Não vêem que cada sacramento é o amor de Deus, com toda a sua força criadora e redentora, dando-se a nós através de meios materiais? O que é a Eucaristia — já iminente — senão o Corpo e Sangue adoráveis do nosso Redentor, que se oferece a nós através da humilde matéria deste mundo — vinho e pão — , através dos elementos da natureza, cultivados pelo homem, como o quis recordar o último Concílio Ecumênico?

Assim se compreende, meus filhos, que o Apóstolo chegasse a escrever: Todas as coisas são vossas, vós sois de Cristo e Cristo é de Deus. Trata-se de um movimento ascendente que o Espírito Santo, difundido em nossos corações, quer provocar no mundo; da terra até à glória do Senhor. E para ficar bem claro que — nesse movimento — se incluía também o que parece mais prosaico, São Paulo escreveu ainda: quer comais, quer bebais, fazei tudo para aglória de Deus.

Esta doutrina da Sagrada Escritura, que se encontra — como sabem — no próprio cerne do espírito do Opus Dei, deve levar-nos a realizar o trabalho com perfeição, a amar a Deus e aos homens pondo amor nas pequenas coisas da jornada habitual, descobrindo esse algo divino que se encerra nos detalhes. Que bem ficam aqui aqueles versos do poeta de Castela!: Despacito, y buena letra: el hacer las cosas bien importa más que el hacerlas1.

Eu lhes asseguro, meus filhos, que quando um cristão desempenha com amor a mais intranscendente das ações diárias, está desempenhando algo donde transborda a transcendência de Deus. Por isso tenho repetido, com insistente martelar, que a vocação cristã consiste em transformar em poesia heróica a prosa de cada dia. Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir-se o céu e a terra. Mas não: onde de verdade se juntam é no coração, quando se vive santamente a vida diária…

Viver santamente a vida diária, como acabo de dizer. E com estas palavras me refiro a todo o programa dos afazeres cristãos. Portanto, deixem-se de sonhos, de falsos idealismos, de fantasias, disso que costumo chamar de mística do oxalá: oxalá não me tivesse casado, oxalá não tivesse esta profissão, oxalá tivesse mais saúde, oxalá fosse jovem, oxalá fosse velho…; e atenham-se, pelo contrário, sobriamente, à realidade mais material e imediata, que é onde o Senhor está: olhai minhas mãos e meus pés — disse Jesus ressuscitado — , sou eu mesmo.Apalpaie vede que um espírito não tem carne e ossos, como vedes que eu tenho.

São muitos os aspectos do ambiente secular que se iluminam a partir destas verdades. Pensem, por exemplo, na atuação que têm como cidadãos na vida civil. Um homem ciente de que o mundo — e não só o templo — é o lugar do seu encontro com Cristo, ama este mundo, procura adquirir um bom preparo intelectual e profissional, vai formando — com plena liberdade — seus próprios critérios sobre os problemas do meio em que se desenvolve; e, por conseqüência, toma suas próprias decisões, as quais, por serem decisões de um cristão, procedem além disso de uma reflexão pessoal, que tenta humildemente captar a vontade de Deus nesses detalhes pequenos e grandes da vida.

Referências da Sagrada Escritura
Notas
1

Devagarinho,, e boa letra; que fazer as coisas bem, importa mais que fazê-las. A. Machado, Poesias Completas, CLXI. — Proverbios y cantares, XXIV. Espasa Calpe, Madrid, 1940. (N. do T.)

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