A grandeza da vida corrente

Íamos um dia, já faz tantos anos, por uma estrada de Castela e, lá longe, no campo, presenciamos uma cena que me tocou e que em muitas ocasiões me serviu para a minha oração: vários homens, depois de cravarem com força na terra umas estacas, utilizaram-nas para segurar verticalmente uma rede e formar o redil. Mais tarde, aproximaram-se do local os pastores com as suas ovelhas e cordeiros; chamavam-nos pelo nome; e, um a um, entravam no aprisco, para estarem todos juntos, seguros.

E eu, meu Senhor, lembro-me hoje de modo particular desses pastores e desse redil, porque todos nós, que aqui estamos reunidos para conversar contigo - e outros muitos no mundo inteiro -, nos sentimos metidos na tua malhada. Tu mesmo o disseste: Eu sou o Bom Pastor e conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas me conhecem. Tu nos conheces bem; sabes que queremos ouvir, escutar e secundar sempre atentamente os teus assobios de Pastor Bom, porque a vida eterna consiste em conhecer-te a ti, único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, que Tu enviaste.

Enamora-me tanto a imagem de Cristo, rodeado à direita e à esquerda pelas suas ovelhas, que a mandei colocar no oratório onde celebro habitualmente a Santa Missa; e em outros lugares, como despertador da presença de Deus, fiz gravar as palavras de Jesus: Cognosco oves meas etcognoscunt me meae*, para considerarmos a todo o momento que Ele nos repreende, ou nos instrui e nos ensina como o pastor à sua grei. Vem, pois, muito a propósito esta evocação das terras de Castela.

(*) “Conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas me conhecem” (N. do T.).

Vós e eu fazemos parte da família de Cristo, porque Ele mesmo nos escolheu antes da criação do mundo para que sejamos santos e imaculados na sua presença, pelo amor, tendo-nos predestinado para sermos filhos adotivos por Jesus Cristo, para sua glória, por puro efeito da sua bondade. Esta eleição gratuita que recebemos do Senhor marca-nos um fim bem determinado: a santidade pessoal, como São Paulo nos repete insistentemente: Haec est voluntas Dei: sanctificatio vestra, esta é a Vontade de Deus: a vossa santificação. Não o esqueçamos, portanto: estamos no redil do Mestre para conquistar esse cume.

Não me sai da memória certa ocasião - ocorreu há muito tempo - em que fui rezar à Catedral de Valência e passei pela sepultura do Venerável Ridaura. Contaram-me então que, quando perguntavam a esse sacerdote, já muito idoso, quantos anos tinha, respondia em valenciano, com muita convicção: Poquets, pouquinhos!, os que venho servindo a Deus. Para bastantes de vós, ainda se contam pelos dedos de uma mão os anos que passaram desde que vos decidistes a ganhar intimidade com Nosso Senhor, a servi-lo no meio do mundo, no vosso próprio ambiente e através da vossa profissão ou ofício. O detalhe não tem excessiva importância. O que interessa é que gravemos a fogo na alma a certeza de que o convite para a santidade, dirigido por Jesus Cristo a todos os homens sem exceção, requer de cada um que cultive a vida interior, que se exercite diariamente nas virtudes cristãs. E não de qualquer maneira, nem para além da medida comum, ou mesmo de um modo excelente: temos que esforçar-nos até o heroísmo, no sentido mais forte e terminante da expressão.

A meta que vos proponho - ou melhor, a que Deus indica a todos - não é uma miragem ou um ideal inatingível. Poderia relatar-vos muitos exemplos concretos de mulheres e homens da rua, como vós e como eu, que encontraram Jesus que passa quasi in occulto - como que em segredo - pelas encruzilhadas aparentemente mais vulgares, e se decidiram a segui-lo, abraçados com amor à cruz de cada dia. Nesta época de desmoronamento geral, de transigências e desânimos, ou de libertinagem e anarquia, parece-me ainda mais atual aquela simples e profunda convicção que, nos começos do meu trabalho sacerdotal e sempre, me consumiu em desejos de comunicar à humanidade inteira: Estas crises mundiais são crises de santos.

Vida interior: é uma exigência da chamada que o Mestre colocou na alma de todos. Temos que ser santos - vou dizê-lo com uma frase castiça da minha terra - sem que nos falte um pêlo*: cristãos de verdade, autênticos, canonizáveis. E, senão, teremos fracassado como discípulos do único Mestre.

Vede, além disso, que Deus, ao fixar a atenção em nós, ao conceder-nos a sua graça para que lutemos por alcançar a santidade no meio do mundo, nos impõe também a obrigação do apostolado. Apercebei-vos de que, até humanamente, como diz um Padre da Igreja, a preocupação pelas almas brota como uma conseqüência lógica dessa eleição: Quando descobrisque alguma coisa vos foi de proveito, procurais atrair os outros. Tendes, pois, que desejar que haja outros que vos acompanhem pelos caminhos do Senhor. Se ides ao foro ou às termas, e deparais com alguém que está desocupado, vós o convidais a acompanhar-vos. Aplicai ao campo espiritual este costume terreno e, quando fordes a Deus, não o façais sozinhos.

Se não queremos malbaratar o tempo inutilmente - mesmo com as falsas desculpas das dificuldades exteriores do ambiente, que nunca faltaram desde os inícios do cristianismo -, devemos ter muito presente que Jesus Cristo vinculou ordinariamente à vida interior a eficácia da ação com que procuramos arrastar os que nos rodeiam. Para influirmos mediante a atividade apostólica, Cristo estabeleceu como condição a santidade; corrijo-me, o esforço da nossa fidelidade, porque santos na terra não o seremos nunca. Parece incrível, mas Deus e os homens precisam da nossa fidelidade sem paliativos, sem eufemismos, que chegue até as últimas conseqüências, sem medianias nem barganhas, em plenitude de vocação cristã assumida e praticada com esmero.

(*) Expressão equivalente a “da cabeça aos pés” (N. do T.).

Talvez algum de vós pense que me estou referindo exclusivamente a um setor de pessoas seletas. Não vos enganeis tão facilmente, arrastados pela covardia ou pelo comodismo. Senti, pelo contrário, a urgência divina de ser cada um outro Cristo, ipse Christus, o próprio Cristo; em poucas palavras, a urgência de que a nossa conduta transcorra em coerência com as normas da fé, pois a santidade que devemos pretender não é uma santidade de segunda categoria, que não existe. E o principal requisito que nos é pedido - bem de acordo com a nossa natureza - consiste em amar: A caridade é o vínculo da perfeição; caridade que devemos praticar segundo os preceitos explícitos que o próprio Senhor estabeleceu: Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua almae com toda a tua mente, sem reservarmos nada para nós. Nisto consiste a santidade.

Trata-se certamente de um objetivo elevado e árduo. Mas não percais de vista que o santo não nasce; forja-se no contínuo jogo da graça divina e da correspondência humana. Tudo aquilo que se desenvolve - observa um dos escritores cristãos dos primeiros séculos, referindo-se à união com Deus - começa por ser pequeno. É alimentando-se gradualmente que, mediante progressos constantes, chega a tornar-se grande. Por isso te digo que, se desejas portar-te como um cristão conseqüente - sei que estás disposto, ainda que muitas vezes te custe vencer ou puxar para cima este pobre corpo -, tens de cuidar em extremo dos pormenores mais ínfimos, porque a santidade que Nosso Senhor te exige alcança-se cumprindo com amor de Deus o trabalho, as obrigações de cada dia, que quase sempre se compõem de realidades corriqueiras.

Pensando naqueles que, com o passar dos anos, ainda andam sonhando - com sonhos vãos e pueris, como Tartarin de Tarascon - em caçar leões pelos corredores da casa, onde porventura não há senão ratos e pouco mais; pensando neles, insisto, recordo-vos a grandeza do caminhar à maneira divina no cumprimento fiel das obrigações habituais da jornada, com essas lutas que cumulam de alegria o Senhor e que só Ele e cada um de nós conhecemos.

Convencei-vos de que, geralmente, não encontrareis espaço para façanhas deslumbrantes porque, entre outras razões, não costumam apresentar-se. Em contrapartida, não vos faltam ocasiões de demonstrar através do que é pequeno, do que é normal, o amor que tendes por Jesus Cristo. Também nas coisas diminutas se mostra a grandeza da alma, comenta São Jerônimo. Não admiramos o Criador só no céu e na terra, no sol e no oceano, nos elefantes, camelos, bois, cavalos, leopardos, ursos e leões; mas também nos animais minúsculos, como a formiga, os mosquitos, as moscas, os vermes e outros animais deste jaez, que distinguimos melhor pelos seus corpos do que pelos seus nomes; tanto nos grandes como nos pequenos admiramos a mesma maestria. De igual modo, a alma que se dá a Deus põe nas coisas menores o mesmo fervor que nas maiores.

Quando meditamos naquelas palavras de Nosso Senhor: Eu me santifico a mim mesmo por amor deles, para que eles também sejam santificados na verdade, compreendemos claramente o nosso único fim: a santificação, ou melhor, que devemos ser santos para santificar. Ao mesmo tempo, talvez nos assalte, como uma sutil tentação, o pensamento de que somos muito poucos os que estamos decididos a corresponder a esse convite divino, além de que nos vemos como instrumentos de muito pouca categoria. É verdade, somos muito poucos, em comparação com o resto da humanidade, e pessoalmente não valemos nada. Mas a afirmação do Mestre ressoa com autoridade: o cristão é luz, sal, fermento do mundo, e um pouco de levedura faz fermentar toda a massa. Precisamente por isso, sempre preguei que nos interessam todas as almas - de cem, cem -, sem discriminações de gênero algum, na certeza de que Jesus Cristo a todos nos redimiu, e quer empregar uns poucos, apesar da sua nulidade pessoal, para que dêem a conhecer esta salvação.

Um discípulo de Cristo jamais tratará mal pessoa alguma; ao erro chama erro, mas, a quem está errado, deve corrigi-lo com afeto; senão, não poderá ajudá-lo, não poderá santificá-lo. Temos que conviver, temos que compreender, temos que desculpar, temos que ser fraternos; e, como aconselhava São João da Cruz, em todo o momento é preciso pôr amor onde não há amor, para tirar amor, mesmo nessas circunstâncias aparentemente intranscendentes que o trabalho profissional e as relações familiares e sociais nos oferecem. Portanto, tu e eu aproveitaremos até as oportunidades mais banais que se nos apresentem para nos santificarmos e para santificar os que conosco partilham dos mesmos anseios cotidianos, sentindo na nossa vida o peso doce e sugestivo da corredenção.

Vou prosseguir estes momentos de conversa diante do Senhor servindo-me de uma nota que utilizei anos atrás e que conserva toda a sua atualidade. Apontei então umas considerações de Santa Teresa de Ávila: Tudo o que acaba e não contenta a Deus é nada e menos que nada. Compreendemos agora por que uma alma deixa de saborear a paz e a serenidade quando se afasta do seu fim, quando se esquece de que Deus a criou para a santidade? Esforçai-vos por não perder nunca este “ponto de mira” sobrenatural, mesmo à hora do lazer ou do descanso, tão necessários quanto o trabalho na vida de cada um.

Bem podeis chegar ao cume da vossa tarefa profissional, bem podeis alcançar os triunfos mais retumbantes, como fruto dessa libérrima iniciativa com que exerceis as atividades temporais; que, se abandonais esse sentido sobrenatural que deve presidir a todos os nossos afazeres humanos, tereis errado lamentavelmente de caminho.

Permiti-me uma breve digressão, que vem perfeitamente ao caso. Jamais perguntei a nenhum dos que se aproximaram de mim o que pensava em matéria de política: não me interessa! Com essa norma da minha conduta, manifesto-vos uma realidade que está metida no âmago do Opus Dei, a que com a graça e a misericórdia divinas me dediquei completamente, para servir a Igreja Santa. Esse tema não me interessa, porque vós, cristãos, gozais da mais plena liberdade, com a conseqüente responsabilidade pessoal, para intervir como mais vos aprouver em questões de índole política, social, cultural…, sem outros limites que os estabelecidos pelo Magistério da Igreja. Só ficaria preocupado - pelo bem das vossas almas - se saltásseis essas fronteiras, já que teríeis criado uma nítida oposição entre a fé que afirmais professar e as vossas obras, e então eu vo-lo faria notar claramente. Este sacrossanto respeito pelas vossas opções, enquanto não vos afastarem da lei de Deus, não o entendem os que ignoram o verdadeiro conceito da liberdade que Cristo nos ganhou na Cruz - qua libertate Christus nos liberavit, da liberdade com que Cristo nos libertou -, os sectários de um e outro extremo: esses que pretendem impor como dogmas as suas opiniões temporais; ou os que degradam o homem, ao negarem o valor da fé colocando-a à mercê dos erros mais brutais.

Mas voltemos ao nosso tema. Dizia-vos antes que bem podeis conseguir os êxitos mais espetaculares no terreno social, na atuação pública, nos afazeres profissionais; que, se vos desleixardes interiormente e vos afastardes do Senhor, no fim tereis fracassado rotundamente. Perante Deus - e é o que conta em última análise -, consegue a vitória aquele que luta por comportar-se como cristão autêntico; não é possível uma solução intermédia. Por isso conheceis tantos que - se apreciarmos a sua situação com olhos humanos - deveriam sentir-se muito felizes e, no entanto, arrastam uma existência inquieta, acre; parece que vendem alegria a granel, mas basta arranhar-lhes um pouco a alma para ficar a descoberto um sabor acerbo, mais amargo que o fel. Não nos acontecerá o mesmo a nenhum de nós, se de verdade procurarmos cumprir constantemente a Vontade de Deus, dar-lhe glória, louvá-lo e estender o seu reinado entre todas as criaturas.

Causa-me uma pena muito grande saber de um católico - de um filho de Deus, chamado pelo Batismo a ser outro Cristo - que tranqüiliza a sua consciência com uma simples piedade formalista, com uma religiosidade que só o leva a rezar vez por outra, quando pensa que lhe convém!; a assistir à Santa Missa nos dias de preceito - e nem sequer em todos -, enquanto cuida pontualmente de ter o estômago apaziguado, comendo a horas fixas; a ceder na sua fé, a trocá-la por um prato de lentilhas, contanto que não tenha de renunciar à sua posição… E depois, com desfaçatez ou com escândalo, serve-se da etiqueta de cristão para subir na vida! Não! Não nos conformemos com as etiquetas: eu vos quero cristãos de corpo inteiro, de uma só peça. E, para consegui-lo, tereis de procurar sem regateios o oportuno alimento espiritual.

Sabeis por experiência pessoal - e assim me tendes ouvido repetir com freqüência, para prevenir desânimos - que a vida interior consiste em começar e recomeçar cada dia; e percebeis no vosso coração, como eu no meu, que precisamos de lutar com continuidade. Tereis observado no vosso exame - e comigo passa-se outro tanto; perdoai que faça estas referências à minha pessoa, mas, enquanto vos falo, vou dando voltas com o Senhor às necessidades da minha alma - que sofreis repetidamente pequenos reveses, que às vezes vos parecem descomunais, porque revelam uma evidente falta de amor, de entrega, de espírito de sacrifício, de delicadeza. Fomentai as ânsias de reparação, com uma contrição sincera, mas não percais a paz.

Lá pelos primeiros anos da década de quarenta, ia eu muitas vezes a Valência. Não dispunha então de nenhum recurso humano e, com os que - como vós agora - se reuniam com este pobre sacerdote, fazia a oração onde boamente podíamos, algumas tardes numa praia solitária. Tal como os primeiros amigos do Mestre, lembras-te? Escreve São Lucas que, ao sair de Tiro com Paulo, a caminho de Jerusalém, nos acompanharam todos com suas mulheres e filhos até fora da cidade, e, postos de joelhos, fizemos a oração na praia.

Pois bem, um dia, ao entardecer, durante um daqueles pores-de-sol maravilhosos, vimos aproximar-se uma barca da praia. Saltaram em terra uns homens morenos, fortes como rochas, molhados, de torso nu, tão queimados pela brisa que pareciam de bronze. Começaram a tirar da água a rede que traziam arrastada pela barca, repleta de peixes brilhantes como a prata. Puxavam-na com muito brio, os pés afundados na areia, com uma energia prodigiosa. De repente, apareceu-lhes um menino, muito crestado também, que se aproximou da corda e, agarrando-a com as suas mãozinhas, começou a puxá-la com evidente falta de jeito. Aqueles pescadores rudes, nada refinados, devem ter sentido o coração estremecer-lhes e permitiram que o pequeno colaborasse. Não o afastaram, embora propriamente fosse um estorvo.

Pensei em vós e em mim; em vós, a quem ainda não conhecia, e em mim; nesse puxar pela corda todos os dias, em tantas coisas. Se nos apresentarmos diante de Deus Nosso Senhor como esse pequeno, convencidos da nossa debilidade, mas dispostos a secundar os seus desígnios, alcançaremos mais facilmente a meta: arrastaremos a rede até a praia, cheia de abundantes frutos, porque onde falham as nossas forças, chega o poder de Deus.

Conheceis de sobra as obrigações do vosso caminho de cristãos, que vos conduzirão sem pausa à santidade; estais também precavidos contra as dificuldades, praticamente contra todas, porque se vislumbram já desde os começos do caminho. Agora insisto em que vos deixeis ajudar, guiar, por um diretor de almas a quem confieis todas as vossas aspirações santas e os problemas cotidianos que possam afetar a vossa vida interior, os descalabros que possais sofrer e as vitórias.

Nessa direção espiritual, mostrai-vos sempre muito sinceros; não vos permitais nada sem dizê-lo; abri por completo a vossa alma, sem medos nem vergonhas. Olhai que, de outro modo, esse caminho tão plano e fácil de andar se complica, e o que a princípio não era nada acaba por converter-se em nó que asfixia. Não pensemos que os que se perdem caem vítimas de um fracasso repentino.Cada um deles errounos começos da sua senda ou então descurou por longo tempo a sua alma, de modo que, enfraquecendo-se progressivamente a força das suas virtudes e crescendo pouco a pouco a dos vícios, veio a sucumbir miseravelmente… Uma casa não se desmorona subitamente, por um acidente imprevisível: ou já havia nos alicerces alguma falha, ou a incúria dos que a habitavam se prolongou por muito tempo, de forma que os defeitos inicialmente muito pequenos foram corroendo a firmeza da estrutura; e assim, quando chegou a tempestade ou se embraveceram as chuvas torrenciais, desabou sem remédio, pondo de manifesto como era antigo o descuido.

Estais lembrados do conto do cigano que foi confessar-se? Não passa de um conto, de uma historieta jocosa, porque da confissão não se fala nunca, além de que eu estimo muito os ciganos. Pobrezinho! Estava verdadeiramente arrependido: Padre, acuso-me de ter roubado uma corda… - pouca coisa, não é verdade? - e detrás havia uma mula, e detrás outra corda… e outra mula… E assim até vinte. Meus filhos, o mesmo se passa no nosso comportamento: mal nos concedemos a corda, vem o resto, vem uma arreata de más inclinações, de misérias que aviltam e envergonham. E outro tanto se passa na convivência: começa-se com um pequeno desaire e acaba-se vivendo de costas para o próximo, no meio da indiferença mais enregelante.

Caçai-nos as raposas, as raposas pequenas que destroem a vinha, as nossas vinhas em flor. Fiéis nas pequenas coisas, muito fiéis nas pequenas coisas! Se procurarmos esforçar-nos assim, aprenderemos também a lançar-nos com confiança nos braços de Santa Maria, como filhos seus. Não vos recordava no começo que todos nós temos muito poucos anos, tantos como os que levamos decididos a ter intimidade com Deus? Pois bem, é lógico que a nossa miséria e a nossa insignificância se aproximem da grandeza e da pureza santa da Mãe de Deus, que é também Mãe nossa.

Posso contar-vos outro episódio real, porque se passaram já muitos anos, muitíssimos anos desde que aconteceu; e porque vos ajudará a refletir, pelo contraste e pela crueza das expressões. Encontrava-me dirigindo um retiro para sacerdotes de diversas dioceses. Eu os procurava com afeto e com interesse, para que viessem falar, desafogar a sua consciência, porque também nós, sacerdotes, precisamos do conselho e da ajuda de um irmão. Comecei a falar com um deles, homem um tanto rude, mas muito nobre e sincero; puxei-lhe da língua um pouco, com delicadeza e claramente, para estancar qualquer ferida que houvesse lá dentro, no seu coração. A certa altura, interrompeu-me mais ou menos com estas palavras: Eu tenho uma inveja muito grande da minha burra; andou prestando serviços paroquiais em sete paróquias, e não há nada a censurar-lhe. Ai se eu tivesse feito o mesmo!

Examina-te a fundo! Talvez também nós não mereçamos o louvor que esse bom cura de aldeia entoava à sua burra. Fomos trabalhando muito pela vida fora, ocupamos estes e aqueles postos de responsabilidade, triunfaste nesta ou naquela tarefa humana… Mas, na presença de Deus, não encontras nada que não devas lamentar? Tentaste de verdade servir a Deus e aos teus irmãos, os homens, ou fomentaste o teu egoísmo, a tua glória pessoal, as tuas ambições, o teu êxito exclusivamente terreno e penosamente caduco?

Se vos falo um pouco cruamente, é porque quero fazer uma vez mais um ato de contrição muito sincero e porque quereria que cada um de vós também pedisse perdão. À vista das nossas infidelidades, à vista de tantos erros, de fraquezas, de covardias - cada um das suas -, repitamos de coração ao Senhor aquelas contritas exclamações de Pedro: Domine, tu omnia nosti, tu scis quia amo te!; Senhor, Tu sabes tudo, Tu sabes que te amo, apesar das minhas misérias! E atrevo-me a acrescentar: Tu sabes que te amo, precisamente por essas minhas misérias, pois me levam a apoiar-me em ti, que és a minha fortaleza: quia tu es, Deus, fortitudo mea. E, a partir daí, recomeçamos.

Vida interior. Santidade nas tarefas habituais, santidade nas pequenas coisas, santidade no trabalho profissional, nas ocupações de cada dia…; santidade, para santificar os outros.

Sonhava certa vez um conhecido meu - nunca acabo de conhecê-lo bem! - que voava num avião a muita altura, mas não lá dentro, na cabine; ia montado sobre as asas. Pobre infeliz! Como sofria e se angustiava! Parecia que Nosso Senhor lhe dava a entender que assim andam pelas alturas de Deus - inseguras, angustiadas - as almas apostólicas que não têm vida interior ou a descuram: com o perigo constante de cair, sofrendo, incertas.

E penso, efetivamente, que correm um sério perigo de desencaminhar-se aqueles que se lançam à ação - ao ativismo! - e prescindem da oração, do sacrifício e dos meios indispensáveis para conseguir uma sólida piedade: a freqüência de Sacramentos, a meditação, o exame de consciência, a leitura espiritual, o trato assíduo com a Virgem Santíssima e com os Anjos da Guarda… Todos esses meios contribuem, além disso, com uma eficácia insubstituível, para que seja tão amável a jornada do cristão, porque da sua riqueza interior fluem a doçura e a felicidade de Deus, como do favo escorre o mel.

Na intimidade pessoal, na conduta externa, na vida de relação, no trabalho, cada um há de procurar manter-se em contínua presença de Deus, com uma conversação - um diálogo - que não se manifesta por fora; ou melhor, não se expressa geralmente com ruído de palavras, mas terá que notar-se pelo empenho e pela amorosa diligência com que procuraremos acabar bem as tarefas, tanto as importantes como as mais comuns. Se não nos comportarmos com essa firmeza, seremos pouco conseqüentes com a nossa condição de filhos de Deus, porque teremos desperdiçado os recursos que o Senhor colocou providencialmente ao nosso alcance, para que arribemos ao estado do varão perfeito, à medida da idade perfeita segundo Cristo.

Durante a última guerra espanhola, viajava eu com freqüência, para atender sacerdotalmente muitos rapazes que se encontravam nas frentes de batalha. E certa vez escutei numa trincheira um diálogo que me ficou muito gravado. Perto de Teruel, um soldado moço dizia de outro, pelos vistos um pouco indeciso, pusilânime: Esse não é homem de uma só peça! Causar-me-ia uma enorme tristeza que de qualquer um de nós se pudesse afirmar, com fundamento, que é inconseqüente, homem que assegura querer ser autenticamente cristão, santo, mas que despreza os meios adequados, já que no cumprimento das suas obrigações não manifesta continuamente a Deus o seu carinho e o seu amor filial. Se a nossa atuação se desenhasse nesses termos, também nem tu nem eu seríamos cristãos de uma só peça.

Procuremos fomentar no fundo do coração um desejo ardente, uma ânsia grande de alcançar a santidade, ainda que nos contemplemos cheios de misérias. Não nos assustemos. À medida que se avança na vida interior, percebem-se com mais clareza os defeitos pessoais. Acontece que a ajuda da graça se transforma numa espécie de lente de aumento, e até a partícula mais minúscula de pó, o grãozinho de areia quase imperceptível, aparecem com dimensões gigantescas, porque a alma adquire a finura divina, e mesmo a menor das sombras incomoda a consciência, que só se satisfaz com a pureza de Deus. Dize agora ao Senhor, do fundo do teu coração: Senhor, quero de verdade ser santo, quero de verdade ser um digno discípulo teu e seguir-te sem condições. E logo a seguir deves fazer o propósito de renovar diariamente os grandes ideais que te animam neste momento.

Jesus, se nós, os que estamos reunidos no teu Amor, fôssemos perseverantes! Se conseguíssemos traduzir em obras esses anelos que Tu mesmo despertas na nossa alma! Perguntai-vos com muita freqüência: Eu, para que estou na terra? E assim procurareis atingir o perfeito acabamento - cheio de caridade - nas tarefas que empreenderdes em cada jornada e no cuidado com as coisas pequenas. Prestaremos atenção ao exemplo dos santos: pessoas como nós, de carne e osso, com fraquezas e debilidades, que souberam vencer e vencer-se por amor de Deus. Consideraremos a sua conduta e - como as abelhas, que destilam de cada flor o néctar mais precioso - aproveitaremos com as suas lutas. Vós e eu aprenderemos também a descobrir muitas virtudes naqueles que nos rodeiam - dão-nos lições de trabalho, de abnegação, de alegria… -, e não nos deteremos demasiado nos seus defeitos, a não ser quando for imprescindível para os ajudarmos com a correção fraterna.

Como Nosso Senhor, eu também gosto muito de falar de barcas e redes, para que todos tiremos dessas cenas evangélicas alguns propósitos firmes e bem determinados. Conta-nos São Lucas que uns pescadores lavavam e remendavam as suas redes nas margens do lago de Genesaré. Jesus aproxima-se daquelas naves atracadas na ribeira e sobe a uma delas, à de Simão. Com que naturalidade o Senhor se mete na barca de cada um de nós! Para nos complicar a vida, como se repete em tom de queixa por aí. Convosco e comigo cruzou-se o Senhor no nosso caminho, para nos complicar a existência delicadamente, amorosamente.

Depois de pregar da barca de Pedro, dirige-se aos pescadores: Duc in altum, et laxate retia vestra in capturam!, navegai mar adentro e lançai as vossas redes! Fiados na palavra de Cristo, obedecem, e obtêm aquela pesca prodigiosa. E olhando para Pedro, que, como Tiago e João, não saía do seu assombro, o Senhor explica-lhe: Não tenhas medo, de hoje em diante serás pescador de homens. E eles, trazidas as barcas para terra, deixando todas as coisas, seguiram-no.

A tua barca - os teus talentos, as tuas aspirações, as tuas realizações - não serve para nada se não a colocas à disposição de Cristo, se não lhe permites entrar nela com liberdade, se a convertes num ídolo. Tu sozinho, com a tua barca, se prescindes do Mestre, falando sobrenaturalmente, caminhas direto para o naufrágio. Só se admites, se procuras a presença e o governo do Senhor, estarás a salvo das tempestades e dos reveses da vida. Coloca tudo nas mãos de Deus: que os teus pensamentos, as boas aventuras da tua imaginação, as tuas ambições humanas nobres, os teus amores limpos passem pelo coração de Cristo. De outro modo, cedo ou tarde irão a pique com o teu egoísmo.

Se consentes que Deus comande a tua nave, que seja Ele o amo, que segurança!…, mesmo quando parece que se ausenta, que fica adormecido, que se alheia, e se levanta a tempestade no meio das trevas mais densas. Relata São Marcos que os Apóstolos se encontravam nessas circunstâncias, e Jesus, vendo-os remar com muita dificuldade - porque o vento lhes era contrário -, por volta da quarta hora noturna foi ter com eles, andando sobre as águas . Tende confiança, sou eu, não temais. E subiu para a barca com eles, e cessou o vento.

Meus filhos, acontecem tantas coisas na terra!… Poderia falar-vos de penas, de sofrimentos, de maus tratos, de martírios - não tiro à palavra uma só letra -, do heroísmo de muitas almas. Diante dos nossos olhos, na nossa inteligência, brota às vezes a impressão de que Jesus dorme, de que não nos escuta. Mas São Lucas conta como o Senhor se comporta com os seus: Enquanto eles - os discípulos - iam navegando, Jesus adormeceu, e levantou-se uma tempestade de vento sobre o lago, e a barca enchia-se de água, e estavam em perigo. E aproximando-se dEle, despertaram-no, gritando:Mestre, nós perecemos! E levantando-se Jesus, increpou o vento e as ondas, e logo tudo cessou; e veio a bonança. Então disse-lhes: Onde está a vossa fé?

Se nos entregarmos, Ele entrega-se a nós. É preciso confiar plenamente no Mestre, é preciso abandonar-se nas suas mãos sem regateios, manifestar-lhe com as nossas obras que a barca é dEle, que queremos que disponha como lhe apetecer de tudo o que nos pertence.

Termino - recorrendo à intercessão de Santa Maria - com estes propósitos: vamos viver de fé; vamos perseverar com esperança, vamos permanecer grudados a Jesus Cristo; vamos amá-lo de verdade, de verdade, de verdade; vamos percorrer e saborear a nossa aventura de Amor, porque estamos enamorados de Deus; vamos deixar que Cristo entre na nossa pobre barca e tome posse da nossa alma, como Dono e Senhor; vamos manifestar-lhe com sinceridade que nos esforçaremos por manter-nos sempre na sua presença, dia e noite, porque Ele nos chamou à fé: Ecce ego quia vocasti me!, aqui estou porque me chamaste, e viemos ao seu redil, atraídos pelos seus brados e assobios de Bom Pastor, na certeza de que somente à sua sombra encontraremos a verdadeira felicidade temporal e eterna.

Referências da Sagrada Escritura
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