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Pondo de lado as dificuldades que possam surgir entre pais e filhos, também são correntes entre marido e mulher desentendimentos, que às vezes chegam a comprometer seriamente a paz familiar. Que conselho daria aos casais?

Que se amem. Saibam que ao longo da vida haverá desentendimentos e dificuldades que, resolvidos com naturalidade, contribuirão até para tornar o amor mais profundo.

Cada um de nós tem seu feitio, seus gostos pessoais, seu gênio — seu mau gênio, por vezes — e seus defeitos. Cada um tem também coisas agradáveis em sua personalidade, e, por isso, e por muitas mais razões, pode ser amado. O convívio é possível quando todos se empenham em corrigir as deficiências próprias e procurar passar por alto as faltas dos outros; isto é, quando há amor que anule e supere tudo o que falsamente poderia ser motivo de separação ou de divergência. Pelo contrário, se dramatizamos os pequenos contrastes e mutuamente começamos a lançar em rosto uns aos outros os defeitos e os erros, então acaba a paz e corremos o risco de matar o amor.

Os casais têm graça de estado — a graça do sacramento — para viverem todas as virtudes humanas e cristãs da convivência: a compreensão, o bom humor, a paciência; o perdão, a delicadeza no comportamento recíproco. O que importa é não se descontrolarem, não se deixarem dominar pelo nervosismo, pelo orgulho ou pelas manias pessoais. Para tanto, o marido e a mulher devem crescer em vida interior e aprender da Sagrada Família a viver com delicadeza — por um motivo humano e sobrenatural ao mesmo tempo — as virtudes do lar cristão. Repito: a graça de Deus não lhes falta.

Se alguém diz que não pode agüentar isto ou aquilo, que lhe é impossível calar-se, está exagerando para se justificar. É preciso pedir a Deus força para saber dominar o capricho, graça para ter o domínio de si próprio, porque os perigos de uma zanga são estes: perde-se o controle e as palavras se enchem de amargura, chegando a ofender e, embora sem querê-lo, a ferir e a causar mal.

É necessário aprender a calar, a esperar e a dizer as coisas de modo positivo, otimista. Quando ele se zanga, é o momento de ela ser especialmente paciente, até chegar de novo a serenidade; e vice-versa. Se há afeto sincero e preocupação por aumentá-lo, é muito difícil que os dois se deixem dominar pelo mau-humor no mesmo instante…

Outra coisa muito importante: devemos acostumar-nos a pensar que nunca temos toda a razão. Pode-se dizer, inclusive que , em assuntos desses, ordinariamente tão opináveis, quanto mais de certeza temos de possuir toda a razão, tanto mais certo é que não a temos. Discorrendo deste modo, torna-se depois mais fácil retificar e, se for preciso, pedir perdão, que é a melhor maneira de acabar com uma zanga. Assim se chega à paz e à ternura. Não animo ninguém a brigar, mas é natural que briguemos algumas vezes com aqueles de quem mais gostamos, porque são os que habitualmente vivem conosco. Afinal não se briga com o Preste João das Índias4. Portanto, essas pequenas zangas entre os esposos, se não são freqüentes — e é preciso procurar que não o sejam — , não demonstram falta de amor e podem mesmo ajudar a aumentá-lo.

Um último conselho: não briguem nunca diante dos filhos. Para conseguir isso, basta porem-se de acordo com um olhar, com um gesto. Depois discutirão, com mais serenidade, se não forem capazes de evitá-lo. A paz conjugal deve ser o ambiente da família, porque é condição necessária para uma educação profunda e eficaz. Que os filhos vejam em seus pais um exemplo de entrega, de amor sincero, de ajuda mútua, de compreensão, e que as ninharias da vida diária não lhes ocultem a realidade de um afeto que é capaz de superar seja o que for.

Às vezes nos tomamos muito a sério. Todos nos aborrecemos de quando em quando: umas vezes porque é necessário, outras porque nos falta espírito de mortificação. O que importa é demonstrar que esses aborrecimentos não quebram o afeto, e restabelecer a intimidade familiar com um sorriso. Numa palavra: que marido e mulher vivam amando-se um ao outro e amando os filhos, pois assim amam a Deus.

Notas
4

O preste João das Índias é o nome atribuído desde a Idade Média a um rei ou sacerdote lendário, que os diplomatas e aventureiros europeus andaram procurando desde o século XI. ,O seu nome ficou como símbolo de personagem irreal, conservando-se na língua espanhola como sinônimo de “ninguém”. No texto, por conseguinte, o autor quer dizer: “afinal, é preciso alguém para brigar”... (N. do T.)

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