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Há 5 pontos em "Entrevistas com Mons. Josemaria Escrivá ", cuja matéria seja Secularidade.

Por outro lado, o progresso da história da Igreja levou a superar um certo clericalismo, que tende a desfigurar tudo quanto se refere aos leigos, atribuindo-lhes segundas intenções. Agora tornou-se mais fácil entender que o que o Opus Dei vivia e proclamava era nem mais nem menos isto: a vocação divina do cristão corrente, com um compromisso sobrenatural preciso. Espero que chegue o dia em que a frase "os católicos penetram nos ambientes sociais" se deixe de dizer e que todos percebam que é uma expressão clerical. Seja como for, ela não se aplica em nada ao apostolado do Opus Dei. Os sócios do Opus Dei não têm necessidade de penetrar nas estruturas temporais, pelo simples fato de serem cidadãos comuns, iguais aos outros: pelo fato, portanto, de já lá estarem.

Se Deus chama para o Opus Dei uma pessoa que trabalha numa fábrica, ou num hospital, ou no parlamento, isso significa que, daí em diante, essa pessoa estará decidida a fazer todo o possível para santificar, com a graça de Deus, essa profissão. Não é senão a consciencialização das exigências radicais da mensagem evangélica, no que concerne à vocação específica recebida.

Pensar que essa consciencialização significa abandonar a vida normal, é uma idéia legítima apenas para os que recebem de Deus a vocação religiosa, com seu contemptus mundi, o desprezo ou desestima pelas coisas do mundo; mas querer fazer desse abandono do mundo a essência ou o cume do cristianismo é, evidentemente, uma barbaridade.

Não é, por conseguinte, o Opus Dei que introduz seus sócios em determinados ambientes; eles já lá estavam, repito, e não têm motivo para sair. Aliás, as vocações para o Opus Dei — que surgem da graça de Deus e daquele apostolado de amizade e de confidência, a que antes me referi — se dão em todos os ambientes.

Talvez essa mesma simplicidade da natureza e modo de agir do Opus Dei constitua uma dificuldade para os que estão cheios de complicações e parecem incapazes de entender tudo o que é genuíno e reto.

Como é natural, sempre haverá quem não compreenda a essência do Opus Dei; e isso não nos admira, porque já o Senhor avisou os seus destas dificuldades, comentando-lhes que non est discipulussuper Magistrum (Mt 10, 24), não é o discípulo mais que o Mestre. Ninguém pode pretender que todos o apreciem, embora tenha certamente o direito de que todos o respeitem como pessoa e como filho de Deus. Infelizmente há fanáticos que querem impor totalitariamente suas idéias; e estes nunca perceberão o amor que os sócios do Opus Dei têm à liberdade pessoal dos outros, e depois à sua própria liberdade pessoal, sempre com responsabilidade pessoal também.

Lembro-me de um caso muito expressivo. Em certa cidade, cujo nome não seria delicado referir, a Câmara Municipal estava deliberando sobre a conveniência de conceder uma ajuda econômica a uma atividade educativa dirigida por sócios do Opus Dei, que, como todas as obras corporativas realizadas pela Obra, tem uma clara função de utilidade social. A maioria dos vereadores era favorável a essa ajuda. Explicando as razões dessa atitude, um deles, socialista, comentava que ele havia conhecido pessoalmente a atividade daquele Centro; "É uma atividade — disse — que se caracteriza pelo fato de todos os seus dirigentes serem muito amigos da liberdade pessoal: nessa residência moram estudantes de todas as religiões e de todas as ideologias". Os vereadores comunistas votaram contra. E um d eles, justificando seu voto negativo, disse ao socialista: "Eu me opus porque, se as coisas estão nesse pé, essa residência constitui uma eficaz propaganda do catolicismo".

Quem não respeita a liberdade dos outros ou deseja opor-se à Igreja, não pode apreciar uma atividade apostólica. Mas, mesmo nestes casos, eu, como homem, estou obrigado a respeitá-lo e a procurar encaminhá-lo para a verdade; e, como cristão, estou obrigado a amá-lo e a rezar por ele.

Acabam de escutar a leitura solene dos dois textos da Sagrada Escritura correspondentes à Missa do XXI domingo depois de Pentecostes. Tendo ouvido a Palavra de Deus, ficam já situados no âmbito em que querem mover-se as palavras que agora vou dizer: palavras de sacerdote, pronunciadas perante uma grande família de filhos de Deus em sua Igreja Santa. Palavras, portanto, que desejam ser sobre-naturais, pregoeiras da grandeza de Deus e de suas misericórdias para com os homens: palavras que a todos preparam para a impressionante Eucaristia, que hoje celebramos no campus da Universidade de Navarra.

Considerem por alguns instantes o fato que acabo de mencionar. Celebramos a Sagrada Eucaristia, o sacrifício sacramental do Corpo e Sangue do Senhor, esse mistério de fé que reúne em si todos os mistérios do Cristianismo. Celebramos, portanto, a ação mais sagrada e transcendente que os homens, pela graça de Deus, podem realizar nesta vida. Comungar no Corpo e no Sangue do Senhor vem a ser, em certo sentido, como que desligar-nos de nossos liames de terra e de tempo, para estarmos já com Deus no Céu, onde o próprio Cristo nos enxugará as lágrimas dos olhos e onde não haverá morte, nem pranto, nem gritos de fadiga, porque o mundo velho já terá terminado.

Esta verdade tão consoladora e profunda, este significado escatológico da Eucaristia, como os teólogos costumam denominá-lo, poderia, no entanto, ser mal entendido: e assim aconteceu sempre que se quis apresentar a existência cristã como algo unicamente espiritual — isto é, espiritualista — , próprio de pessoas puras, extraordinárias, que não se misturam com as coisas desprezíveis deste mundo ou que, quando muito, as toleram como algo necessariamente justaposto ao espírito, enquanto aqui vivemos.

Quando se vêem as coisas deste modo, o templo se converte, por antonomásia. no lugar da vida cristã; e, nessa altura, ser cristão é ir ao templo, participar em cerimônias sagradas, incrustar-se numa sociologia eclesiástica, numa espécie de mundo segregado, que se apresenta a si mesmo como ante-câmara do céu, enquanto o mundo comum vai percorrendo o seu caminho. Assim, a doutrina do Cristianismo, a vida da graça, andariam como que roçando o buliçoso avançar da história humana, mas sem se encontrarem com ele.

Nesta manhã de Outubro, enquanto nos preparamos para adentrar-mos no memorial da Páscoa do Senhor, respondemos simplesmente não! a essa visão deformada do Cristianismo. Reparem, por um momento, em como está em emoldurada a nossa Eucaristia, a nossa Ação de Graças: encontramo-nos num templo singular; poderia dizer-se que a nave é o campus universitário; o retábulo, a Biblioteca da Universidade; além, as máquinas que levantam novos edifícios; e, por cima, o céu de Navarra…

Será que esta enumeração não está confirmando, de uma forma plástica e inesquecível, que é a vida corrente o verdadeiro lugar da existência cristã? Meus filhos: aí onde estão nossos irmãos os homens, aí onde estão as nossas aspirações, nosso trabalho, nossos amores — aí está o lugar do nosso encontro cotidiano com Cristo. Em meio das coisas mais materiais da terra é que nós devemos santificar-nos, servindo a Deus e a todos os homens.

Tenho-o ensinado constantemente com palavras da Escritura Santa: o mundo não é ruim, porque saiu das mãos de Deus, porque é criatura dEle, porque Javé olhou para ele e viu que era bom. Nós, os homens, é que o fazemos ruim e feio, com nossos pecados e nossas infidelidades. Não duvidem, meus filhos; qualquer modo de evasão das honestas realidades diárias é para os homens e mulheres do mundo coisa oposta à vontade de Deus.

Pelo contrário, devem compreender agora — com uma nova clareza — que Deus os chama a servi-Lo em e a partir das tarefas civis, materiais, seculares da vida humana. Deus nos espera cada dia: no laboratório, na sala de operações de um hospital, no quartel, na cátedra universitária, na fábrica, na oficina, no campo, no seio do lar e em todo o imenso panorama do trabalho. Não esqueçamos nunca: há algo de santo, de divino, escondido nas situações mais comuns, algo que a cada um de nós compete descobrir.

Eu costumava dizer àqueles universitários e àqueles operários que me procuravam lá pela década de 30, que tinham de saber materializar a vida espiritual. Queria afastá-los, assim, da tentação, tão freqüente nessa época e agora, de levar uma vida dupla: a vida interior, a vida de relação com Deus, por um lado; e por outro, diferente e separada, a vida familiar, profissional e social, cheia de pequenas realidades terrenas.

Não, meus filhos! Não pode haver uma vida dupla, não podemos ser como esquizofrênicos, se queremos ser cristãos. Há uma única vida, feita de carne e espírito, e essa é que tem de ser — na alma e no corpo — santa e plena de Deus, desse Deus invisível, que nós encontraremos nas coisas mais visíveis e materiais.

Não há outro caminho, meus filhos: ou sabemos encontrar o Senhor em nossa vida de todos os dias, ou não O encontraremos nunca. Por isso, posso afirmar que nossa época precisa devolver à matéria e às situações aparentemente mais vulgares seu nobre e original sentido: pondo-as ao serviço do Reino de Deus, espiritualizando-as, fazendo delas meio e ocasião para o nosso encontro contínuo com Jesus Cristo.

Esta doutrina da Sagrada Escritura, que se encontra — como sabem — no próprio cerne do espírito do Opus Dei, deve levar-nos a realizar o trabalho com perfeição, a amar a Deus e aos homens pondo amor nas pequenas coisas da jornada habitual, descobrindo esse algo divino que se encerra nos detalhes. Que bem ficam aqui aqueles versos do poeta de Castela!: Despacito, y buena letra: el hacer las cosas bien importa más que el hacerlas1.

Eu lhes asseguro, meus filhos, que quando um cristão desempenha com amor a mais intranscendente das ações diárias, está desempenhando algo donde transborda a transcendência de Deus. Por isso tenho repetido, com insistente martelar, que a vocação cristã consiste em transformar em poesia heróica a prosa de cada dia. Na linha do horizonte, meus filhos, parecem unir-se o céu e a terra. Mas não: onde de verdade se juntam é no coração, quando se vive santamente a vida diária…

Viver santamente a vida diária, como acabo de dizer. E com estas palavras me refiro a todo o programa dos afazeres cristãos. Portanto, deixem-se de sonhos, de falsos idealismos, de fantasias, disso que costumo chamar de mística do oxalá: oxalá não me tivesse casado, oxalá não tivesse esta profissão, oxalá tivesse mais saúde, oxalá fosse jovem, oxalá fosse velho…; e atenham-se, pelo contrário, sobriamente, à realidade mais material e imediata, que é onde o Senhor está: olhai minhas mãos e meus pés — disse Jesus ressuscitado — , sou eu mesmo.Apalpaie vede que um espírito não tem carne e ossos, como vedes que eu tenho.

São muitos os aspectos do ambiente secular que se iluminam a partir destas verdades. Pensem, por exemplo, na atuação que têm como cidadãos na vida civil. Um homem ciente de que o mundo — e não só o templo — é o lugar do seu encontro com Cristo, ama este mundo, procura adquirir um bom preparo intelectual e profissional, vai formando — com plena liberdade — seus próprios critérios sobre os problemas do meio em que se desenvolve; e, por conseqüência, toma suas próprias decisões, as quais, por serem decisões de um cristão, procedem além disso de uma reflexão pessoal, que tenta humildemente captar a vontade de Deus nesses detalhes pequenos e grandes da vida.

Sei que não tenho necessidade de recordar o que, ao longo de tantos anos, venho repetindo. Esta doutrina de liberdade de cidadãos, de convivência e de compreensão, constitui parte importante da mensagem que o Opus Dei difunde. Será que ainda tenho de voltar a afirmar que os homens e mulheres que querem servir a Jesus Cristo na Obra de Deus são simplesmente cidadãos iguais aos outros, que se esforçam por viver com séria responsabilidade — até as últimas conclusões — sua vocação cristã?

Nada distingue meus filhos de seus concidadãos. Em contrapartida , além da fé, nada têm de comum com os membros das congregações religiosas. Amo os religiosos, e venero e admito suas clausuras, seus apostolados, seu afastamento do mundo — seu contemptus mundi — , que são outros sinais de santidade na igreja. Mas o Senhor não me deu vocação religiosa, e desejá-la para mim seria uma desordem. Nenhuma autoridade na terra poderá me obrigar a ser religioso, assim como nenhuma autoridade pode forçar-me a contrair matrimônio. Sou sacerdote secular: sacerdote de Jesus Cristo, que ama o mundo apaixonadamente.

Referências da Sagrada Escritura
Referências da Sagrada Escritura
Notas
1

Devagarinho,, e boa letra; que fazer as coisas bem, importa mais que fazê-las. A. Machado, Poesias Completas, CLXI. — Proverbios y cantares, XXIV. Espasa Calpe, Madrid, 1940. (N. do T.)

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