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Há 4 pontos em "É Cristo que passa", cuja matéria seja Abnegação.

E, com os Reis Magos, oferecemos também mirra, o sacrifício que não deve faltar na vida cristã. A mirra traz-nos à lembrança a paixão do Senhor: na Cruz, dão-lhe a beber mirra misturada com vinho , e com mirra ungiram seu corpo para a sepultura. Mas não pensemos que a reflexão sobre a necessidade do sacrifício e da mortificação significa introduzir uma nota de tristeza na festa alegre que hoje celebramos.

Mortificação não é pessimismo nem espírito acre. A mortificação nada vale sem a caridade: por isso devemos procurar mortificações que, além de nos fazerem passar pelas coisas da terra com domínio, não mortifiquem os que vivem ao nosso lado. O cristão não pode ser nem um verdugo nem um miserável; é um homem que sabe amar com obras, que prova o seu amor na pedra de toque da dor.

Mas devo dizer outra vez que, em geral, essa mortificação não consistirá em grandes renúncias, que aliás não são freqüentes. Há de compor-se de pequenas vitórias: sorrir para quem nos aborrece, negar ao corpo o capricho de uns bens supérfluos, acostumar-se a escutar os outros, fazer render o tempo que Deus põe à nossa disposição… E tantos outros detalhes, aparentemente insignificantes - contrariedades, dificuldades, dissabores - que surgem ao longo do dia sem que os procuremos.

Esta semana, que o povo cristão tradicionalmente chama Santa, oferece-nos uma vez mais a ocasião de considerarmos - de revivermos - os momentos em que se consuma a vida de Jesus. Tudo o que as diversas manifestações da piedade nos trazem à memória, nestes dias, orienta-se certamente para a Ressurreição, que é o fundamento da nossa fé, como escreve São Paulo. Mas não devemos percorrer com excessiva pressa esse caminho; não devemos deixar cair no esquecimento uma coisa muito simples, que talvez nos escape de vez em quando: é que não poderemos participar da Ressurreição do Senhor se não nos unirmos à sua Paixão e à sua Morte. Para acompanharmos Cristo na sua glória, no fim da Semana Santa, é preciso que penetremos antes no seu holocausto e nos sintamos uma só coisa com Ele, morto no Calvário.

A entrega generosa de Cristo defronta-se com o pecado, essa realidade dura de aceitar, mas inegável: o mistério da iniqüidade, a inexplicável maldade da criatura que se levanta, por soberba, contra Deus. A história é tão antiga como a humanidade. Recordemos a queda dos nossos primeiros pais; depois, toda essa cadeia de depravações que balizam a marcha dos homens, e, finalmente, as nossas rebeldias pessoais. Não é fácil considerar a perversão que o pecado implica e compreender tudo o que a fé nos diz. Devemos tomar consciência de que, mesmo no plano humano, a magnitude da ofensa se mede pela condição do ofendido, pelo seu valor pessoal, pela sua dignidade social, pelas suas qualidades. E o homem ofende a Deus: a criatura renega o seu Criador.

Mas Deus é Amor. O abismo de malícia que o pecado encerra foi transposto por uma Caridade infinita. Deus não abandona os homens. Os desígnios divinos previram que, para reparar as nossas faltas, para restabelecer a unidade perdida, não eram suficientes os sacrifícios da Antiga Lei; fazia-se necessária a entrega de um Homem que fosse Deus.

Podemos imaginar - para de algum modo nos aproximarmos deste mistério insondável - que a Trindade Beatíssima se reúne em conselho, em sua contínua relação íntima de amor imenso, e, como resultado dessa decisão eterna, o Filho Unigênito de Deus Pai assume a nossa condição humana, carrega sobre si as nossas misérias e as nossas dores, para acabar cravado com pregos num madeiro.

Este fogo, este desejo de cumprir o decreto salvador de Deus Pai, atravessa toda a vida de Cristo, desde o seu próprio nascimento em Belém. Ao longo dos três anos em que conviveram com Ele, os discípulos ouvem-no repetir incansavelmente que seu alimento é fazer a vontade dAquele que o enviou. Até que, indo a meio a tarde da primeira Sexta-Feira Santa, se conclui a sua imolação. Inclinando a cabeça, entregou o espírito. É com essas palavras que o Apóstolo São João nos descreve a morte de Cristo. Jesus, assumindo todas as culpas dos homens sob o peso da Cruz, morre pela força e vileza dos nossos pecados.

Devemos meditar no Senhor, ferido dos pés à cabeça por nosso amor. Com uma frase que se aproxima da realidade, embora não acabe de exprimir tudo, podemos repetir com um escritor de há séculos: O corpo de Jesus é um retábulo de dores. À vista de Cristo transformado num farrapo, convertido num corpo inerte descido da Cruz e confiado a sua Mãe; à vista desse Jesus despedaçado, poderia concluir-se que essa cena é a manifestação mais clara de uma derrota. Onde estão as multidões que o seguiam? E o Reino cujo advento anunciava? No entanto, não é derrota, mas vitória. Agora Cristo acha-se mais perto que nunca do momento da Ressurreição, da manifestação da glória que conquistou com a sua obediência.

O pensamento da morte de Cristo traduz-se num convite para que nos situemos com absoluta sinceridade perante os nossos afazeres diários e tomemos a sério a fé que professamos. A Semana Santa não pode, pois, ser um parêntesis sagrado no contexto de um viver motivado exclusivamente por interesses humanos; deve ser uma ocasião de adentrar nas profundezas do Amor de Deus, para assim podermos mostrá-lo aos homens, com a palavra e com as obras.

Mas o Senhor estabelece condições. São Lucas conserva-nos uma declaração sua de que não podemos prescindir: Se algum dos que me seguem não aborrece seu pai e sua mãe, a mulher e os filhos, os irmãos e as irmãs, e até a sua própria vida, não pode ser meu discípulo. São termos duros. É verdade que nem a palavra “odiar” nem a palavra “aborrecer” exprimem bem o pensamento original de Jesus. De qualquer forma, as palavras do Senhor foram fortes, porque também não se reduzem a um amar menos, como por vezes se interpreta temperadamente, para suavizar a frase. É terrível uma expressão tão contundente, não porque implique uma atitude negativa ou impiedosa - pois o Jesus que agora fala é o mesmo que manda amar o próximo como à própria alma, e que dá a sua vida pelos homens -, mas por ser uma locução que indica simplesmente que, diante de Deus, não são possíveis as meias medidas. As palavras de Cristo poderiam traduzir-se por amar mais, amar melhor, ou antes por não amar com um amor egoísta nem tampouco com um amor de curto alcance: devemos amar com o Amor de Deus.

É disso que se trata. Observemos com atenção a última das exigências de Jesus: et animam suam. A vida, a própria alma, é o que o Senhor nos pede. Se somos fátuos, se nos preocupamos apenas com a nossa comodidade pessoal, se encaramos a existência dos outros e inclusive do mundo por referência exclusiva a nós mesmos, não temos o direito de nos chamarmos cristãos e de nos considerarmos discípulos de Cristo. A entrega tem que se realizar com obras e com verdade, não apenas com a boca. O amor a Deus convida-nos a levar a cruz a pulso, a sentir também sobre nós o peso da humanidade inteira, e a cumprir, dentro das circunstancias próprias do estado e do trabalho de cada um, os desígnios ao mesmo tempo claros e amorosos da vontade do Pai. Na passagem que comentamos, Jesus prossegue: E aquele que não carrega a sua cruz e me segue, também não pode ser meu discípulo.

Temos que aceitar a vontade de Deus sem medo, precisamos formular sem vacilações o propósito de edificar toda a nossa vida de acordo com o que a nossa fé nos ensina e exige. Não há dúvida de que encontraremos luta, sofrimento e dor, mas, se possuímos uma fé verdadeira, nunca nos consideraremos infelizes: mesmo com penas e até com calúnias, seremos felizes, com uma felicidade que nos impelirá a amar os outros e a fazê-los participar da nossa alegria sobrenatural.

Não se nos pode ocultar que resta ainda muito por fazer. Em certa ocasião, contemplando talvez o suave movimento das espigas já graúdas, disse Jesus aos seus discípulos: A messe é grande, mas os operários são poucos. Rogai, pois, ao Senhor da messe que mande operários para a sua messe. Como então, também agora faltam peões que queiram suportar o peso do dia e do calor. Ese nós, os que trabalhamos, não formos fiéis, acontecerá o que descreveu o profeta Joel: Destruída a colheita, a terra ficou de luto: porque o trigo está seco, o vinho arruinado e o azeite perdido. Os lavradores estão confusos, os vinhateiros gritam por causa do trigo e da cevada. Não há colheita.

Não há colheita quando não se está disposto a aceitar generosamente um trabalho constante, que pode tornar-se longo e cansativo: lavrar a terra, semear, cuidar dos campos, fazer a ceifa e a debulha… É na história, no tempo, que se edifica o Reino de Deus. O Senhor confiou-nos a todos essa tarefa, e ninguém pode sentir-se dispensado dela. Ao adorarmos e contemplarmos hoje Cristo na Eucaristia, pensemos que ainda não chegou a hora do descanso, que a jornada continua.

Lê-se no livro dos Provérbios: Aquele que cultiva a sua terra terá pão em abundância. Procuremos aplicar esta passagem à nossa vida espiritual: quem não lavra o terreno de Deus, quem não é fiel à missão divina de se entregar ao serviço dos outros, ajudando-os a conhecer Cristo, dificilmente conseguirá entender o que é o Pão eucarístico. Ninguém aprecia o que não lhe custou esforço. Para apreciarmos e amarmos a Sagrada Eucaristia, temos que percorrer o caminho de Jesus: ser trigo, morrer para nós mesmos, ressurgir cheios de vida e dar fruto abundante: cem por um!.

Esse caminho resume-se numa única palavra: amar. Amar é ter o coração grande, sentir as preocupações dos que estão ao nosso lado, saber perdoar e compreender: sacrificar-se, com Jesus Cristo, por todas as almas. Se amarmos com o coração de Cristo, aprenderemos a servir, e defenderemos a verdade claramente e com amor. Para amar desse modo, é preciso que cada um extirpe da sua própria vida tudo o que estorva a vida de Cristo em nós: o apego à nossa comodidade, a tentação do egoísmo, a tendência para a exaltação pessoal. Só se reproduzirmos em nós a vida de Cristo, poderemos transmiti-la aos outros; só se experimentarmos a morte do grão de trigo, poderemos trabalhar nas entranhas da terra, transformá-la por dentro, torná-la fecunda.