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Há 3 pontos em "É Cristo que passa", cuja matéria seja Generosidade.

Inicia-se o ano litúrgico, e o Intróito da Missa propõe-nos uma consideração intimamente relacionada com o princípio da nossa vida cristã: a vocação que recebemos. Vias tuas, Domine, demonstra mihi, et semitas tuas edoce me : mostra-me, Senhor, os teus caminhos e indica-me as tuas veredas. Pedimos ao Senhor que nos guie, que nos deixe ver seus passos, para que possamos caminhar para a plenitude dos seus mandamentos, que é a caridade.

Acredito que vós e eu, ao pensarmos nas circunstâncias que acompanharam a nossa decisão de nos esforçarmos por viver integramente a fé, daremos muitas graças ao Senhor e teremos a convicção sincera - sem falsas humildades - de que não houve nisso mérito algum da nossa parte. Em geral, aprendemos a invocar Deus desde a infância, dos lábios de pais cristãos; mais adiante, professores, companheiros e conhecidos nos ajudaram de mil maneiras a não perder Jesus Cristo de vista.

Um dia - não quero generalizar; abre teu coração ao Senhor e conta-lhe a tua história -, talvez um amigo, um simples cristão igual a ti, te fez descobrir um panorama profundo e novo, e, ao mesmo tempo, antigo como o Evangelho. Sugeriu-te a possibilidade de te empenhares seriamente em seguir Cristo, em ser apóstolo de apóstolos. Talvez tenhas perdido então a tranqüilidade e não a tenhas recuperado, convertida em paz, enquanto livremente, porque te apeteceu - que é a razão mais sobrenatural -, não respondeste sim a Deus. E veio a alegria, forte, constante, que só desaparece quando te afastas dEle.

Não me agrada falar de escolhidos nem de privilegiados. Mas é Cristo quem fala, quem escolhe. É a linguagem da Escritura: Elegit nos in ipso ante mundi constitutionem - diz São Paulo - ut essemus sancti. Escolheu-nos antes da criação do mundo, para que sejamos santos. Eu sei que isto não te enche de orgulho, nem te faz sentir-te superior aos outros homens. Essa escolha, raiz da chamada, deve ser a base da tua humildade. Levanta-se por acaso um monumento aos pincéis do grande pintor? Serviram para plasmar obras primas, mas o mérito é do artista. Nós, cristãos, somos apenas instrumentos do Criador do mundo, do Redentor de todos os homens.

A Quaresma comemora os quarenta dias que Jesus passou no deserto, como preparação para esses anos de pregação que culminam na Cruz e na glória da Páscoa. Quarenta dias de oração e de penitência que, ao findarem, desembocam na cena que a liturgia de hoje oferece à nossa consideração no Evangelho da Missa: as tentações de Cristo.

É uma cena cheia de mistério, que o homem em vão pretende entender - Deus que se submete à tentação, que deixa agir o Maligno -, mas que pode ser meditada se pedirmos ao Senhor que nos faça compreender a lição que encerra.

Jesus Cristo tentado. A Tradição esclarece a cena considerando que Nosso Senhor quis também sofrer a tentação para nos dar exemplo em tudo. E assim é, porque Cristo foi perfeito Homem, igual a nós, exceto no pecado , Depois de quarenta dias de jejum, em que possivelmente se alimentou apenas de ervas, raízes e um pouco de água, Jesus sente fome: fome verdadeira, como a de qualquer outra criatura. E quando o demônio lhe propõe que converta as pedras em pão, o Senhor não só rejeita o alimento que o corpo lhe pedia, como afasta de si uma incitação maior: a de usar do poder divino para remediar, digamos assim, um problema pessoal.

Tê-lo-emos notado ao longo dos Evangelhos: Jesus não faz milagres em benefício próprio. Converte a água em vinho para os esposos de Caná ; multiplica os pães e os peixes para dar de comer a uma multidão faminta , Mas Ele ganha o pão, durante muitos anos, com o seu próprio trabalho. Mais tarde, ao longo do seu peregrinar por terras de Israel, viverá com a ajuda daqueles que o seguem.

São João relata-nos que, depois de uma longa caminhada, chegando Jesus ao poço de Sicar, mandou os seus discípulos ao povoado para comprarem comida; e ao ver aproximar-se a Samaritana, pediu-lhe água, porque não tinha com que tirá-la. Seu corpo fatigado pela longa caminhada experimenta o cansaço, e há ocasiões em que dorme para reparar as forças. Generosidade do Senhor que se humilhou, que aceitou plenamente a condição humana, que não se serve do seu poder de Deus para fugir das dificuldades ou do esforço; que nos ensina a ser fortes, a amar o trabalho, a apreciar a nobreza humana e divina de saborear as conseqüências da entrega.

Na segunda tentação, quando o demônio lhe propõe que se atire do alto do Templo, Jesus recusa-se novamente a usar do seu poder divino. Cristo não busca a vanglória, o espetáculo, a comédia humana que procura utilizar Deus como pano de fundo da sua própria excelência. Jesus Cristo quer cumprir a vontade do Pai sem adiantar os tempos nem antecipar a hora dos milagres, antes pelo contrário, percorrendo passo a passo a dura senda dos homens, o amável caminho da Cruz.

Coisa muito parecida vemos na terceira tentação: são-lhe oferecidos reinos, poder, glória. O demônio pretende estender às ambições humanas essa atitude que se deve reservar só para Deus: promete uma vida fácil a quem se prostrar diante dele, diante dos ídolos. Nosso Senhor reconduz a adoração ao seu único e verdadeiro fim - Deus -, e reafirma a sua vontade de servir: Afasta-te de mim, Satanás, porque está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só a Ele servirás.

Encher o mundo de luz, ser sal e luz : assim descreveu o Senhor a missão dos seus discípulos. Levar até os últimos confins da terra a boa nova do amor de Deus. A isso devem todos os cristãos dedicar a sua vida, de um modo ou de outro.

Direi mais: temos que sentir o profundo anseio de não permanecer sós, temos que fazer com que muitos outros se animem a contribuir para essa missão divina de levar a alegria e a paz aos corações dos homens: Na medida em que progredirdes, atraí os outros convosco, escreve São Gregório Magno. Desejai ter companheiros no caminho para o Senhor.

Mas tenhamos presente que, cum dormirent homines, enquanto os homens dormiam, veio o semeador do joio, diz o Senhor numa parábola. Nós, os homens, estamos expostos a deixar-nos vencer pelo sono do egoísmo, da superficialidade, dispersando o coração em mil experiências passageiras, evitando aprofundar no verdadeiro sentido das realidades terrenas. Má coisa esse sono, que sufoca a dignidade do homem e o torna escravo da tristeza!

Há um caso que nos deve doer de modo especial: o daqueles cristãos que poderiam dar mais e não se decidem; que poderiam entregar-se totalmente, vivendo todas as conseqüências da sua vocação de filhos de Deus, mas relutam em ser generosos. Deve doer-nos porque a graça da fé não nos foi dada para que permaneça oculta, mas para que brilhe diante dos homens ; porque, além disso, está em jogo a felicidade temporal e eterna dos que assim procedem. A vida cristã é uma maravilha divina, com promessas de satisfação e serenidade, com a condição, porém, de que saibamos apreciar o dom de Deus , sendo generosos sem medida.

É necessário, pois, despertar os que tenham caído nesse mau sono: lembrar-lhes que a vida não é um divertimento, mas tesouro divino que deve frutificar. E é necessário também ensinar o caminho aos que têm boa vontade e bons desejos, mas não sabem como levá-los à prática. Somos urgidos a fazê-lo pelo próprio Jesus Cristo. Cada um de nós tem que ser não apenas apóstolo, mas apóstolo de apóstolos: que arraste os outros consigo, que os mova a dar a conhecer Cristo por sua vez.