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Há 4 pontos em "É Cristo que passa", cuja matéria seja Sagrada Família .

Estamos no Natal. Vêm-nos à lembrança os diversos fatos e circunstâncias que rodearam o nascimento do Filho de Deus, e o olhar detém-se na gruta de Belém, no lar de Nazaré. Maria, José e Jesus Menino ocupam, de modo muito especial, o centro do nosso coração. Que nos diz, que nos ensina a vida ao mesmo tempo simples e admirável dessa Sagrada Família?

Entre as muitas considerações que poderíamos fazer, quero comentar agora principalmente uma. O nascimento de Jesus significa, como diz a Escritura, a inauguração da plenitude dos tempos, o momento escolhido por Deus para manifestar por inteiro seu amor aos homens, entregando-nos o seu próprio Filho. Essa vontade divina cumpre-se no meio das circunstâncias mais normais e comuns: uma mulher que dá à luz, uma família, uma casa. A Onipotência divina, o esplendor de Deus, passam através das realidades humanas, unem-se ao elemento humano. A partir daí, nós, os cristãos, sabemos que, com a graça do Senhor, podemos e devemos santificar todas as realidades nobres da nossa vida. Não há situação terrena, por mais insignificante e vulgar que pareça, que não possa ser ocasião de um encontro com Cristo e etapa do nosso caminhar para o reino dos céus.

Por isso, não é de estranhar que a Igreja se alegre e se rejubile, contemplando a modesta morada de Jesus, Maria e José. É grato - reza o hino de matinas desta festa - recordar a pequena casa de Nazaré e a existência simples que ali se vive, celebrar com cânticos a simplicidade humilde que rodeia Jesus, a sua vida escondida. Foi ali que, ainda menino, Ele aprendeu o ofício de José, foi ali que cresceu em idade e participou num trabalho de artesão. Junto dele sentava-se sua doce Mãe; junto de José vivia a sua esposa bem-amada, feliz de poder ajudá-lo e oferecer-lhe seus cuidados.

Ao pensar nos lares cristãos, gosto de imaginá-los luminosos e alegres, como foi o da Sagrada Família. A mensagem do Natal ressoa com toda a força: Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens de boa vontade. Que a paz de Cristo triunfe em vossos corações, escreve o Apóstolo. A paz de nos sabermos amados por nosso Pai-Deus, incorporados em Cristo, protegidos pela Virgem Santa Maria, amparados por José. Essa é a grande luz que ilumina nossas vidas e que, por entre as dificuldades e misérias pessoais, nos impele a continuar para a frente, cheios de ânimo. Cada lar cristão deveria ser um remanso de serenidade em que, por cima das pequenas contrariedades diárias, se pudesse notar uma afeição profunda e sincera, uma tranqüilidade profunda, fruto de uma fé real e vivida.

Tanto São Mateus como São Lucas nos falam de São José como varão que descendia de uma estirpe ilustre: a de Davi e Salomão, reis de Israel. Historicamente, os detalhes desta ascendência são um pouco confusos, não sabemos qual das duas genealogias enumeradas pelos evangelistas diz respeito a Maria - Mãe de Jesus segundo a carne - e qual a José, que era pai do Senhor segundo a lei judaica. Nem sabemos se a cidade natal de São José era Belém, onde se recenseou, ou Nazaré, onde vivia e trabalhava.

Sabemos, porém, que não era uma pessoa rica: era um trabalhador, como milhões de outros homens em todo o mundo; exercia o ofício fatigante e humilde que Deus havia escolhido para Si ao tomar a nossa carne e ao querer viver trinta anos entre nós como outra pessoa qualquer.

A Sagrada Escritura diz-nos que José era artesão. Vários Padres acrescentam que foi carpinteiro. São Justino, referindo a vida de trabalho de Jesus, afirma que fazia arados e jugos. Baseando-se provavelmente nessas palavras, Santo Isidoro de Sevilha conclui que José era ferreiro. Seja como for, era um operário que trabalhava a serviço de seus concidadãos, que tinha uma habilidade manual, fruto de anos de esforço e de suor.

Das narrações evangélicas depreende-se a grande personalidade humana de José: em nenhum momento surge aos nossos olhos como um homem apoucado ou assustado perante a vida; pelo contrário, sabe enfrentar os problemas, ultrapassar as situações difíceis, assumir com responsabilidade e iniciativa as tarefas que lhe são confiadas.

Não estou de acordo com a forma clássica de representar São José como um ancião, ainda que com isso se tenha tido a boa intenção de ressaltar a perpétua virgindade de Maria. Eu imagino-o jovem, forte, talvez com alguns anos mais do que a Virgem, mas na plenitude da vida e do vigor humano.

Para viver a virtude da castidade, não é preciso esperar pela velhice ou pelo termo das energias. A castidade nasce do amor e, para um amor limpo, nem a robustez nem a alegria da juventude representam qualquer obstáculo. Jovem era o coração e o corpo de São José quando contraiu matrimônio com Maria, quando soube do mistério da sua Maternidade divina, quando viveu junto dEla respeitando a integridade que Deus queria oferecer ao mundo, como um sinal mais da sua vinda às criaturas. Quem não for capaz de entender um amor assim, é porque conhece muito mal o verdadeiro amor e desconhece por completo o sentido cristão da castidade.

Como dizíamos, José era um artesão da Galiléia, um homem como tantos outros. E o que pode esperar da vida um habitante de uma aldeia perdida como Nazaré? Apenas trabalho, todos os dias, sempre com o mesmo esforço. E, no fim da jornada, uma casa pobre e pequena, para recuperar as forças e recomeçar a tarefa no dia seguinte.

Mas o nome de José significa em hebreu Deus acrescentará. A vida santa dos que cumprem a sua vontade, Deus acrescenta dimensões inesperadas: o que a torna importante, o que dá valor a tudo - o divino. À vida humilde e santa de José, Deus acrescentou - se assim me é permitido falar - a vida da Virgem Maria e a de Jesus, Senhor Nosso. Deus nunca se deixa vencer em generosidade. José podia tornar próprias as palavras pronunciadas por Santa Maria, sua Esposa: Quia fecit mihi magna qui potens est, fez em mim coisas grandes Aquele que é Todo-Poderoso, quia respexit humilitatem, porque olhou para a minha pequenez.

José era efetivamente um homem comum, em quem Deus confiou para realizar coisas grandes. Soube viver - tal e como o Senhor queria - todos e cada um dos acontecimentos que compuseram a sua vida. Por isso, a Santa Escritura louva José afirmando dele que era justo. E, na língua hebraica, justo quer dizer piedoso, servidor irrepreensível de Deus, cumpridor da vontade divina ; outras vezes, significa bom e caridoso para com o próximo. Numa palavra, justo é aquele que ama a Deus e demonstra esse amor cumprindo os mandamentos divinos e orientando toda a vida para o serviço de seus irmãos, os homens.

Desde há muito tempo gosto de recitar uma comovente invocação a São José, que a própria Igreja nos propõe, entre as orações preparatórias da missa: José, varão bem-aventurado e feliz, a quem foi concedido ver e ouvir o Deus que muitos reis quiseram ver e ouvir, e não viram nem ouviram; e não apenas vê-lo e ouvi-lo, mas também segurá-lo nos braços, beijá-lo, vesti-lo e guardá-lo: rogai por nós. Esta oração nos servirá para entrarmos no último tema que hoje queria tocar: o convívio íntimo entre José e Jesus.

Para São José, a vida de Jesus foi uma contínua descoberta da sua própria vocação. Recordávamos atrás aqueles primeiros anos cheios de circunstâncias aparentemente contraditórias: glorificação e fuga, majestade dos Magos e pobreza do presépio, cântico dos Anjos e silêncio dos homens. Quando chega o momento de apresentar o Menino no Templo, José, que leva a modesta oferenda de um par de pombas, vê Simeão e Ana proclamarem que Jesus é o Messias. E seu pai e sua mãe escutavam com admiração , diz São Lucas. Mais tarde, quando o Menino fica no Templo sem que Maria e José o saibam, ao encontrá-lo novamente, depois de o procurarem por três dias, o mesmo evangelista diz que se maravilharam.

José surpreende-se, José admira-se. Deus vai-lhe revelando os seus desígnios e ele esforça-se por entendê-los. Como toda a alma que queira seguir Jesus de perto, descobre imediatamente que não é possível andar com passo cansado nem persistir na rotina. Deus não se conforma com a estabilidade no nível atingido, com o descanso naquilo que já se tem. Deus exige continuamente mais e mais, e seus caminhos não são os nossos caminhos humanos. Como nenhum outro homem antes ou depois dele, São José aprendeu de Jesus a permanecer atento às maravilhas de Deus, a ter a alma e o coração abertos.

Mas se José aprendeu de Jesus a viver de um modo divino, atrever-me-ia a dizer que, sob o aspecto humano, ensinou muitas coisas ao Filho de Deus. Há qualquer coisa que não acabo de gostar no título de pai adotivo com que às vezes se designa José, porque oferece o perigo de sugerir que as suas relações com Jesus eram frias e externas. Certamente a nossa fé nos diz que José não era pai segundo a carne, mas essa não é a única paternidade possível.

A José não só se deve o nome de pai - lemos num sermão de Santo Agostinho -, como se deve mais a ele do que a qualquer outro. E acrescenta: De que forma era pai? Tanto mais profundamente pai, quanto mais casta foi a sua paternidade. Alguns pensavam que era pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, tal como são pais os outros, os que geram segundo a carne, e não recebem seus filhos somente como fruto do seu afeto espiritual. Por isso diz São Lucas: pensava-se que era pai de Jesus. Por que diz apenas que se pensava? Porque o pensamento e o juízo humanos se referem àquilo que costuma acontecer entre os homens. E o Senhor não nasceu do germe de José. Mas àpiedade e à caridade de José nasceu um filho da Virgem Maria, que era Filho de Deus.

José amou Jesus como um pai ama o seu filho, dando-lhe tudo o que tinha de melhor. Cuidou daquele Menino como lhe tinha sido ordenado, e fez dele um artesão: transmitiu-lhe o seu oficio. Por isso os vizinhos de Nazaré se referiam a Jesus indistintamente como faber e fabri filius: artesão e filho do artesão. Jesus trabalhou na oficina de José e junto de José. Como seria José, como teria atuado nele a graça, para ser capaz de desempenhar a tarefa de educar o Filho de Deus nos aspectos humanos?

Porque Jesus devia parecer-se com José: no modo de trabalhar, nos traços do seu caráter, na maneira de falar. No realismo de Jesus, no seu espírito de observação, no seu modo de se sentar à mesa e de partir o pão, no seu gosto em expor a doutrina de maneira concreta, tomando como exemplo as coisas da vida corrente, reflete-se o que foi a infância e a juventude de Jesus e, portanto, o seu convívio com José.

Não é possível desconhecer a sublimidade do mistério. Esse Jesus que é homem, que fala com o sotaque de uma região determinada de Israel, que se parece com um artesão chamado José, esse é o Filho de Deus. E quem pode ensinar alguma coisa a Deus? Mas é realmente homem, e vive normalmente: primeiro como criança, depois como adolescente, ajudando na oficina de José; finalmente como homem maduro, na plenitude da idade. Jesus crescia em sabedoria, em idade e em graça, diante de Deus e dos homens.