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Há 4 pontos em "É Cristo que passa", cuja matéria seja Amizade.

Inicia-se o ano litúrgico, e o Intróito da Missa propõe-nos uma consideração intimamente relacionada com o princípio da nossa vida cristã: a vocação que recebemos. Vias tuas, Domine, demonstra mihi, et semitas tuas edoce me : mostra-me, Senhor, os teus caminhos e indica-me as tuas veredas. Pedimos ao Senhor que nos guie, que nos deixe ver seus passos, para que possamos caminhar para a plenitude dos seus mandamentos, que é a caridade.

Acredito que vós e eu, ao pensarmos nas circunstâncias que acompanharam a nossa decisão de nos esforçarmos por viver integramente a fé, daremos muitas graças ao Senhor e teremos a convicção sincera - sem falsas humildades - de que não houve nisso mérito algum da nossa parte. Em geral, aprendemos a invocar Deus desde a infância, dos lábios de pais cristãos; mais adiante, professores, companheiros e conhecidos nos ajudaram de mil maneiras a não perder Jesus Cristo de vista.

Um dia - não quero generalizar; abre teu coração ao Senhor e conta-lhe a tua história -, talvez um amigo, um simples cristão igual a ti, te fez descobrir um panorama profundo e novo, e, ao mesmo tempo, antigo como o Evangelho. Sugeriu-te a possibilidade de te empenhares seriamente em seguir Cristo, em ser apóstolo de apóstolos. Talvez tenhas perdido então a tranqüilidade e não a tenhas recuperado, convertida em paz, enquanto livremente, porque te apeteceu - que é a razão mais sobrenatural -, não respondeste sim a Deus. E veio a alegria, forte, constante, que só desaparece quando te afastas dEle.

Não me agrada falar de escolhidos nem de privilegiados. Mas é Cristo quem fala, quem escolhe. É a linguagem da Escritura: Elegit nos in ipso ante mundi constitutionem - diz São Paulo - ut essemus sancti. Escolheu-nos antes da criação do mundo, para que sejamos santos. Eu sei que isto não te enche de orgulho, nem te faz sentir-te superior aos outros homens. Essa escolha, raiz da chamada, deve ser a base da tua humildade. Levanta-se por acaso um monumento aos pincéis do grande pintor? Serviram para plasmar obras primas, mas o mérito é do artista. Nós, cristãos, somos apenas instrumentos do Criador do mundo, do Redentor de todos os homens.

Acabamos de ler na Santa Missa um texto do Evangelho segundo São João que nos relata a cena da cura milagrosa do cego de nascença. Penso que todos nos comovemos uma vez mais perante o poder e a misericórdia de Deus, que não olha com indiferença para a desgraça humana. Mas gostaria agora de fixar a atenção sobre outros aspectos, para que compreendamos que, quando há amor de Deus, o cristão também não pode permanecer indiferente perante a sorte dos outros homens e sabe por sua vez tratar a todos com respeito; e que, quando esse amor decai, surge o perigo de se invadir, fanática e impiedosamente, a consciência alheia.

Ao passar - diz o Santo Evangelho -, viu Jesus um cego de nascença.Jesus que passa. Com freqüência me tenho maravilhado perante esta forma simples de relatar a clemência divina. Jesus passa, e logo se apercebe da dor. Consideremos, em contrapartida, como eram diferentes os pensamentos dos discípulos naquela ocasião. Perguntam-lhe: Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?

Não nos deve causar estranheza que muitas pessoas, mesmo entre as que se consideram cristãs, se comportem de forma parecida. Antes de mais nada, imaginam o mal. Sem prova alguma, pressupõem-no; e não só admitem essa ordem de pensamentos, como ainda se atrevem a manifestá-los num juízo aventurado, diante da multidão.

A conduta dos discípulos poderia benevolamente ser qualificada de leviana. Naquela sociedade - aliás, como hoje; nisto, pouco se mudou -, havia outros, os fariseus, que faziam dessa atitude uma norma. Lembremo-nos de que maneira Jesus Cristo os denuncia: Veio João, que não come nem bebe, e dizem: Está possesso do demônio. Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizem: É um comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores.

Ataques sistemáticos à fama, conspurcação da conduta irrepreensível. Essa crítica mordaz e lancinante atingiu o próprio Jesus Cristo, e não é raro que alguns reservem o mesmo sistema para os que, embora conscientes de suas lógicas e naturais misérias e erros pessoais - pequenos e inevitáveis, dada a humana fraqueza, acrescentaria -, desejam seguir o Mestre. Mas a comprovação dessas realidades não nos deve levar a justificar tais pecados e delitos - falatórios, como lhes chamam com uma compreensão suspeita - contra o bom nome de ninguém. Jesus anuncia que, se o pai de família foi alcunhado de Belzebu, não é de esperar que se conduzam melhor com os de sua casa ; mas também esclarece que quem chamar néscio a seu irmão, será réu do fogo do inferno.

Donde nasce esta apreciação injusta dos outros? É como se alguns usassem continuamente umas viseiras que lhes alterassem a visão. Não acreditam, por princípio, que seja possível a retidão ou, ao menos, a luta constante por comportar-se bem. Como diz o antigo adágio filosófico, recebem tudo segundo a forma do recipiente: em sua prévia deformação. Para eles, até as coisas mais retas refletem, apesar de tudo, uma atitude retorcida que adota hipocritamente a aparência de bondade. Quando descobrem claramente o bem - escreve São Gregório -, esquadrinham tudo para examinar se, além disso, não haverá algum mal oculto.

É Rei, e anseia por reinar em nossos corações de filhos de Deus. Mas não imaginemos reinados humanos; Cristo não domina nem procura impor-se, porque não veio para ser servido, mas para servir.

Seu reino é a paz, a alegria, a justiça. Cristo, nosso Rei, não espera de nós raciocínios vãos, mas fatos, porque nem todo aquele que diz Senhor! Senhor! entrará no reino dos céus; mas o que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse entrará.

É Médico, e cura o nosso egoísmo se deixarmos que a sua graça penetre até o fundo da alma. Jesus advertiu-nos que a pior doença é a hipocrisia, o orgulho que leva a dissimular os pecados próprios. Com o Médico, é imprescindível que tenhamos uma sinceridade absoluta, que lhe expliquemos toda a verdade e digamos: Domine, si vis, potes me mundare , Senhor, se quiseres - e Tu queres sempre -, podes curar-me. Tu conheces a minha debilidade; sinto estes sintomas e experimento estas outras fraquezas. E descobrimos com simplicidade as chagas; e o pus, se houver pus. Senhor, Tu que curaste tantas almas, faz com que, ao ter-te no meu peito ou ao contemplar-te no Sacrário, te reconheça como Médico divino.

É Mestre de uma ciência que só Ele possui: a do amor sem limites a Deus e, em Deus, a todos os homens. Na escola de Cristo, aprende-se que a nossa existência não nos pertence. Ele entregou a sua vida por todos os homens e, se o seguimos, devemos compreender que também nós não podemos apropriar-nos da nossa de maneira egoísta, sem partilhar das dores dos outros. Nossa vida é de Deus e temos que gastá-la ao seu serviço, preocupando-nos generosamente com as almas e demonstrando com a palavra e o exemplo a profundidade das exigências cristãs.

Jesus espera que alimentemos o desejo de adquirir essa ciência, para nos repetir: Quem tiver sede, venha a mim e beba. E respondemos: ensina-nos a esquecer-nos de nós mesmos, para pensar em Ti e em todas as almas. Deste modo, o Senhor nos levará para a frente com a sua graça, como quando começávamos a escrever - não nos lembramos daqueles traços verticais que fazíamos na infância, guiados pela mão do professor? -, e assim começaremos a saborear a felicidade de manifestar a nossa fé - que já é outra dádiva de Deus - com traços inequívocos de conduta cristã, onde todos possam ler as maravilhas divinas.

É Amigo, o Amigo: Vos autem dixi amicos.Chama-nos amigos e foi Ele quem deu o primeiro passo; amou-nos primeiro. Mas não impõe o seu amor: oferece-o. E prova-o com o sinal mais claro da amizade: Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida por seus amigos. Era amigo de Lázaro, e chorou por ele quando o viu morto. E o ressuscitou. Se nos vir frios, apáticos, talvez com a rigidez de uma vida interior que se extingue, seu pranto será vida para nós: Eu te ordeno, meu amigo, levanta-te e anda , sai dessa vida mesquinha, que não é vida.

São João conserva no seu Evangelho uma frase maravilhosa da Virgem, num episódio que já consideramos antes: o das bodas de Caná. Narra-nos o evangelista que, dirigindo-se aos criados, Maria lhes disse: Fazei o que Ele vos disser.É disso que se trata: de levar as almas a situar-se diante de Jesus e a perguntar-lhe: Domine, quid me vis facere?, Senhor que queres que eu faça?

O apostolado cristão - e refiro-me agora, especificamente, ao apostolado de um simples cristão, ao de um homem ou mulher que vive como outro qualquer entre os seus iguais - é uma grande catequese em que, através do relacionamento pessoal, de uma amizade leal e autêntica, se desperta nos outros a fome de Deus e se ajuda cada um a descobrir novos horizontes - com naturalidade, com simplicidade, como disse, com o exemplo de uma fé bem vivida, com a palavra amável, mas cheia da força da verdade divina.

Sejamos audazes. Contamos com o auxílio de Maria, Regina Apostolorum. E Nossa Senhora, sem deixar de se comportar como Mãe, sabe colocar os seus filhos em face de suas precisas responsabilidades. Aos que dEla se aproximam e contemplam a sua vida, Maria faz sempre o imenso favor de os levar até à cruz, de os colocar bem diante do exemplo do Filho de Deus. E nesse confronto em que se decide a vida cristã, Maria intercede para que a nossa conduta culmine com uma reconciliação do irmão menor - tu e eu - com o Filho primogênito do Pai.

Muitas conversões, muitas decisões de entrega ao serviço de Deus foram precedidas de um encontro com Maria. Nossa Senhora fomentou os desejos de procura, ativou maternalmente as inquietações da alma, fez ansiar por uma mudança, por uma vida nova. E, assim, aquele fazei o que Ele vos disser converteu-se em realidades de amorosa entrega, em vocação cristã que ilumina desde então toda a nossa vida.

Estes momentos de conversa diante do Senhor, em que meditamos sobre a nossa devoção e carinho por sua Mãe, podem, pois, reavivar a nossa fé. O mês de Maio está começando. O Senhor quer que não desperdicemos esta ocasião de crescer no seu Amor através de um trato íntimo com sua Mãe. Saibamos ter com Ela, em cada dia, esses pormenores filiais - pequenas coisas, atenções delicadas -, que se irão tornando grandes realidades de santidade pessoal e de apostolado, quer dizer, de empenho constante por contribuir para a salvação que Cristo veio trazer ao mundo.

Sancta Maria, spes nostra, ancilla Domini, sedes Sapientiae, ora pro nobis! Santa Maria, esperança nossa, escrava do Senhor, sede da Sabedoria, rogai por nós!