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Há 4 pontos em "É Cristo que passa", cuja matéria seja Graça → correspondência à graça.

A existência do cristão desenvolve-se neste clima da misericórdia divina. Esse é o âmbito do esforço com que procura comportar-se como filho do Pai. E quais os principais meios para conseguirmos que a vocação se fortaleça? Hoje te indicarei dois, que são quais eixos vivos da conduta cristã: a vida interior e a formação doutrinal, o conhecimento profundo da nossa fé.

Vida interior, em primeiro lugar. Como são poucos ainda os que a entendem! Ao ouvirem,falar de vida interior, pensam na escuridão do templo, quando não no ambiente rarefeito de certas sacristias. Há mais de um quarto de século venho dizendo que não é isso. O que descrevo é a vida interior de um simples cristão, que habitualmente se encontra em plena rua, ao ar livre; e que na rua, no trabalho, na família e nos momentos de lazer permanece atento a Jesus o dia todo. E o que é isso senão vida de oração contínua? Não é verdade que compreendeste a necessidade de ser alma de oração, com uma relação de amizade com Deus que te leve a endeusar-te? Essa é a fé cristã e assim o compreenderam sempre as almas de oração. Escreve Clemente de Alexandria: Torna-se Deus o homem que quer o mesmo que Deus quer.

A princípio custa; é preciso esforçar-se por dirigir o olhar para o Senhor, por agradecer a sua piedade paternal e concreta para conosco. Pouco a pouco, o amor de Deus - embora não seja coisa de sentimentos - torna-se tão palpável como uma flechada na alma. É Cristo que nos persegue amorosamente: Eis que estou à tua porta e bato.Como vai a tua vida de oração? Não sentes às vezes, durante o dia, desejos de conversar mais com Ele? Não lhe dizes: mais tarde te contarei isto, mais tarde conversarei sobre isto contigo?

Nos momentos expressamente dedicados a esse colóquio com o Senhor, o coração se expande, a vontade se fortalece, a inteligência - ajudada pela graça - embebe em realidades sobrenaturais as realidades humanas. E, como fruto, surgem sempre propósitos claros, práticos, de melhorar a conduta, de tratar delicadamente, com caridade, todos os homens, de nos empenharmos a fundo - com o empenho dos bons esportistas - nesta luta cristã de amor e de paz.

A oração se torna contínua, como o palpitar do coração, como o pulso. Sem essa presença de Deus, não há vida contemplativa; e, sem vida contemplativa, de pouco vale trabalhar por Cristo, porque, se Deus não edifica a casa, em vão trabalham os que a constroem.

Exhortamur ne in vacuum gratiam Dei recipiatis , nós vos exortamos a não receber em vão a graça de Deus. Porque a graça divina pode penetrar em nossas almas nesta Quaresma, se não fecharmos as portas do coração. Precisamos cultivar as boas disposições, o desejo de nos transformarmos a sério, de não brincar com a graça do Senhor.

Não me agrada falar de temor, porque o que move o cristão é a Caridade de Deus, que nos foi manifestada em Cristo, e que nos ensina a amar a todos os homens e a criação inteira. Mas devemos sem dúvida falar de responsabilidade, de seriedade: Não queirais enganar-vos a vós mesmos; com Deus não se brinca , adverte-nos o mesmo Apóstolo.

É preciso decidir-se. Não é lícito viver mantendo acesas, como diz o povo, uma vela a São Miguel e outra ao diabo. É preciso apagar a vela do diabo. Temos que consumir a nossa vida fazendo-a arder por completo ao serviço do Senhor. Se o nosso propósito de santidade for sincero, se tivermos a docilidade de nos abandonarmos nas mãos de Deus, tudo correrá bem. Porque Ele está sempre disposto a dar-nos a sua graça e, especialmente neste tempo, a graça para uma nova conversão, para uma melhora na nossa vida de cristãos. Não podemos considerar esta Quaresma como uma época a mais, como uma simples repetição cíclica do tempo litúrgico. Este momento é único; é uma ajuda divina que temos que aproveitar. Jesus passa ao nosso lado e espera de nós - hoje, agora - uma grande mudança.

Ecce nunc tempus acceptabile, ecce nunc dies salutis ; este é o tempo oportuno, este pode ser o dia da salvação. Ouvem-se novamente os silvos do Bom Pastor, seu chamado carinhoso: Ego vocavi te nomine tuo.Chama-nos a cada um pelo nosso nome, pelo apelativo familiar com que nos chamam as pessoas que nos amam. A ternura de Jesus por nós não se pode traduzir em palavras.

Consideremos juntos esta maravilha do amor de Deus: o Senhor vem ao nosso encontro, espera por nós, coloca-se à beira do caminho, para que tenhamos que vê-lo necessariamente. E chama-nos pessoalmente, falando-nos das nossas coisas, que são também suas, movendo a nossa consciência à compunção, abrindo-a à generosidade, imprimindo em nossas almas o desejo de sermos fiéis, de nos podermos chamar seus discípulos. Basta percebermos estas íntimas palavras da graça - que muitas vezes são como uma censura afetuosa -, para nos darmos conta de que Ele não nos esqueceu durante todo o tempo em que, por nossa culpa, deixamos de o ver. Cristo ama-nos com o carinho inesgotável que se encerra em seu coração de Deus.

Reparemos como insiste: Eu te ouvi no tempo oportuno, eu te ajudei no dia da salvação.Já que Ele te promete e te oferece oportunamente a glória - o seu amor -, e te chama, tu, que irás dar ao Senhor? Como corresponderás, como corresponderei eu também, a esse amor de Jesus que passa?

Ecce nunc dies salutis, aqui está diante de nós o dia da salvação. O chamado do Bom Pastor chega até nós: Ego vocavi te nomine tuo, eu te chamei pelo teu nome. É preciso responder - amor com amor se paga - dizendo: Ecce ego quia vocasti me, chamaste-me e aqui estou. Estou decidido a não permitir que este tempo de Quaresma passe como passa a água sobre as pedras, sem deixar rasto. Deixar-me-ei empapar, transformar; converter-me-ei, dirigir-me-ei de novo ao Senhor, amando-o como Ele deseja ser amado.

Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, e com toda a tua alma, e com toda a tua mente. Que resta do teu coração - comenta Santo Agostinho -, para que possas amar-te a ti mesmo? Que resta da tua alma, que resta da tua mente? “Ex toto”, diz. “Totum exigit te, qui fecit te”.Quem te fez exige tudo de ti.

Depois deste protesto de amor, temos que nos comportar como amadores de Deus. In omnibus exhibeamus nosmetipsos sicut Dei ministros , comportemo-nos em todas as coisas como servidores de Deus. Se te deres como Ele quer, a ação da graça manifestar-se-á na tua conduta profissional, no teu trabalho, no empenho em fazer com estilo divino as coisas humanas, grandes ou pequenas, porque, pelo Amor, todas elas adquirem uma nova dimensão.

Mas nesta Quaresma não podemos esquecer que querer ser servidor de Deus não é fácil. E para recordar as dificuldades, continuemos com o texto de São Paulo recolhido na Epístola da Missa deste Domingo: Como servidores de Deus - escreve o Apóstolo -, com muita paciência nas tribulações, nas necessidades, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nas sedições, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns; com pureza, com doutrina, com longanimidade, com mansidão, com o Espírito Santo, com caridade sincera, com palavras de verdade, com fortaleza de Deus. Nos momentos mais díspares da vida, em todas as situações, temos que nos comportar como servidores de Deus, sabendo que o Senhor está conosco, que somos seus filhos. Temos que ser conscientes dessa raiz divina enxertada em nossa vida, e atuar em conseqüência.

As palavras do Apóstolo devem encher-nos de alegria, porque são como que uma canonização da nossa vida de simples cristãos, que vivem no meio do mundo, partilhando anseios, trabalhos e alegrias com os demais homens, seus iguais. Tudo isso é caminho divino. O que o Senhor nos pede é que a todo o momento nos comportemos como seus filhos e servidores.

Mas essas circunstâncias ordinárias da vida só serão caminho divino se verdadeiramente nos convertermos, se nos entregarmos. Porque São Paulo emprega uma linguagem dura. Promete ao cristão uma vida difícil, arriscada, em perpétua tensão. Como se desfigurou o cristianismo quando se pretendeu fazer dele um caminho cômodo! Mas também é desfigurar a verdade pensar que essa vida profunda e séria, que conhece vivamente todos os obstáculos da existência humana, é uma vida de angústia, de opressão ou de temor.

O cristão é realista, de um realismo sobrenatural e humano, sensível a todos os matizes da vida: a dor e a alegria, o sofrimento próprio e alheio, a certeza e a perplexidade, a generosidade e a tendência para o egoísmo. O cristão conhece tudo, e tudo enfrenta, cheio de integridade humana e da fortaleza recebida de Deus.

Mas temos à nossa espreita um inimigo poderoso, que se opõe ao nosso desejo de encarnar com perfeição a doutrina de Cristo: a soberba, que cresce quando não procuramos descobrir, depois dos fracassos e das derrotas, a mão benfazeja e misericordiosa do Senhor. Então a alma enche-se de penumbras - de triste escuridão -, e julga-se perdida. E a imaginação inventa obstáculos que não são reais, que desapareceriam se os encarássemos simplesmente com um pouco de humildade. A soberba e a imaginação levam às vezes a alma a enveredar por tortuosos calvários; mas nesses calvários não se encontra Cristo, porque onde está o Senhor sempre se goza de paz e de alegria, ainda que a alma se sinta em carne viva e rodeada de trevas.

Outro inimigo hipócrita da nossa santificação: pensar que esta batalha interior tem que se dirigir contra obstáculos extraordinários, contra dragões que respiram fogo. É mais uma manifestação de orgulho. Queremos lutar, mas estrondosamente, com clamores de trombetas e tremular de estandartes.

Devemos convencer-nos de que o maior inimigo da rocha não é a picareta ou o machado, nem o golpe de qualquer outro instrumento, por mais contundente que seja: é essa água miúda, que se infiltra, gota a gota, por entre as fendas do penhasco, até arruinar a sua estrutura. O maior perigo para o cristão é desprezar a luta nessas escaramuças que calam pouco a pouco na alma, até a tornarem frouxa, quebradiça e indiferente, insensível aos apelos de Deus.

Ouçamos o Senhor, que nos diz: Quem é fiel no pouco, também o é no muito, e quem é injusto no pouco, também o é no muito. É como se Ele nos lembrasse: luta a cada instante nos detalhes aparentemente pequenos, mas grandes aos meus olhos; cumpre com pontualidade o dever; sorri a quem precise, ainda que tenhas a alma dorida; dedica sem regateios o tempo necessário à oração; acode em auxílio dos que te procuram; pratica a justiça, ampliando-a com a graça da caridade.

São estas e outras semelhantes as moções que sentiremos cada dia dentro de nós, como um aviso silencioso para que nos treinemos no desporto sobrenatural do domínio próprio. Que a luz de Deus nos ilumine e nos leve a perceber as suas advertências; que nos ajude a lutar, que esteja ao nosso lado na vitória; que não nos abandone na hora da queda, porque assim nos encontraremos sempre em condições de nos levantarmos e de continuar combatendo.

Não podemos parar. O Senhor pede-nos uma luta cada vez mais rápida, cada vez mais profunda, cada vez mais extensa. Estamos obrigados a superar-nos, porque, nesta competição, a única meta é chegar à glória do céu. E se não chegarmos ao céu, nada terá valido a pena.

Referências da Sagrada Escritura
Referências da Sagrada Escritura
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