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Há 9 pontos em "Amigos de Deus", cuja matéria seja Caridade → amor a Deus e aos homens.

Quando meditamos naquelas palavras de Nosso Senhor: Eu me santifico a mim mesmo por amor deles, para que eles também sejam santificados na verdade, compreendemos claramente o nosso único fim: a santificação, ou melhor, que devemos ser santos para santificar. Ao mesmo tempo, talvez nos assalte, como uma sutil tentação, o pensamento de que somos muito poucos os que estamos decididos a corresponder a esse convite divino, além de que nos vemos como instrumentos de muito pouca categoria. É verdade, somos muito poucos, em comparação com o resto da humanidade, e pessoalmente não valemos nada. Mas a afirmação do Mestre ressoa com autoridade: o cristão é luz, sal, fermento do mundo, e um pouco de levedura faz fermentar toda a massa. Precisamente por isso, sempre preguei que nos interessam todas as almas - de cem, cem -, sem discriminações de gênero algum, na certeza de que Jesus Cristo a todos nos redimiu, e quer empregar uns poucos, apesar da sua nulidade pessoal, para que dêem a conhecer esta salvação.

Um discípulo de Cristo jamais tratará mal pessoa alguma; ao erro chama erro, mas, a quem está errado, deve corrigi-lo com afeto; senão, não poderá ajudá-lo, não poderá santificá-lo. Temos que conviver, temos que compreender, temos que desculpar, temos que ser fraternos; e, como aconselhava São João da Cruz, em todo o momento é preciso pôr amor onde não há amor, para tirar amor, mesmo nessas circunstâncias aparentemente intranscendentes que o trabalho profissional e as relações familiares e sociais nos oferecem. Portanto, tu e eu aproveitaremos até as oportunidades mais banais que se nos apresentem para nos santificarmos e para santificar os que conosco partilham dos mesmos anseios cotidianos, sentindo na nossa vida o peso doce e sugestivo da corredenção.

Quando, ao longo dos meus anos de sacerdócio, não direi que prego, mas grito o meu amor à liberdade pessoal, noto em alguns um gesto de desconfiança, como se suspeitassem que a defesa da liberdade traz no seu bojo um perigo para a fé. Tranqüilizem-se esses pusilânimes. Só atenta contra a fé uma interpretação errônea da liberdade, uma liberdade sem qualquer fim, sem norma objetiva, sem lei, sem responsabilidade. Numa palavra: a libertinagem. Infelizmente, é isso o que alguns propugnam. Essa reivindicação, sim, constitui um atentado contra a fé.

Por isso, não é correto falar de liberdade de consciência, que equivale a considerar como de boa categoria moral a atitude do homem que rejeita a Deus. Recordamos atrás que podemos opor-nos aos desígnios salvíficos do Senhor; podemos, mas não devemos fazê-lo. E se alguém assumisse essa posição deliberadamente, pecaria, porque estaria transgredindo o primeiro e o mais fundamental dos mandamentos: Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração.

Eu defendo com todas as minhas forças a liberdade das consciências, que denota não ser lícito a ninguém impedir que a criatura preste culto a Deus. É preciso respeitar as legítimas ânsias de verdade; o homem tem obrigação grave de procurar o Senhor, de conhecê-lo e adorá-lo, mas ninguém na terra deve permitir-se impor ao próximo a prática de uma fé que este não possui; assim como ninguém pode arrogar-se o direito de maltratar quem a recebeu de Deus.

Misturado entre a multidão, um daqueles peritos que já não conseguiam discernir os ensinamentos revelados a Moisés, porque eles mesmos os haviam emaranhado numa estéril casuística, fez uma pergunta ao Senhor. Jesus abre os seus lábios divinos para responder a esse doutor da Lei e diz-lhe pausadamente, com a segura persuasão de quem fala por experiência: Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todo o teu entendimento. Este é o primeiro e o maior mandamento. O segundo é semelhante a este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. A estes dois mandamentos se reduz toda a Lei e os profetas.

Reparai agora no Mestre reunido com os seus discípulos, na intimidade do Cenáculo. Aproxima-se o momento da sua Paixão, e o Coração de Cristo, rodeado daqueles a quem ama, estala em labaredas inefáveis: Dou-vos um mandamento novo, confia-lhes: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei; e que, como eu vos amei, assim também vos ameis uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos, se tiverdes amor uns aos outros.

Para nos aproximarmos do Senhor através das páginas do Santo Evangelho, recomendo sempre que nos esforcemos por meter-nos de tal modo na cena, que dela participemos como um personagem mais. Sei de tantas almas normais e comuns que o fazem! Assim chegaremos a ensimesmar-nos, como Maria de Betânia, que permanecia pendente das palavras de Jesus; ou nos atreveremos, como Marta, a manifestar-lhe sinceramente as nossas inquietações, até as mais insignificantes.

Não odiar o inimigo, não retribuir o mal com o mal, renunciar à vingança, perdoar sem rancor, eram coisas que então - e ainda hoje, não nos enganemos - se consideravam como uma conduta insólita, demasiado heróica, fora dos padrões normais. Até aqui chega a mesquinhez das criaturas.

Jesus Cristo, que veio salvar todos os homens e deseja associar os cristãos à sua obra redentora, quis ensinar aos seus discípulos - a ti e a mim - uma caridade grande, sincera, mais nobre e valiosa: devemos amar-nos mutuamente como Ele ama a cada um de nós. Só desta maneira, imitando - dentro da nossa rudeza pessoal - os modos divinos, conseguiremos abrir o nosso coração a todos os homens, amar de um modo mais alto, inteiramente novo.

Que bem puseram os primeiros cristãos em prática esta caridade ardente, que sobressaía com excesso para lá dos cumes da simples solidariedade humana ou da benignidade de caráter! Amavam-se entre si, doce e fortemente, enraizados no Coração de Cristo. Um escritor do século II, Tertuliano, transmitiu-nos o comentário que os pagãos faziam ao contemplarem, comovidos, a conduta dos fiéis do seu tempo, tão cheia de atrativo sobrenatural e humano: Vede como se amam, repetiam.

Se percebes que tu - agora ou em tantos pormenores do teu dia - não mereces esse louvor, que o teu coração não reage como devia às instâncias divinas, pensa também que chegou para ti o tempo de retificar. Atende ao convite de São Paulo: Façamos o bem a todos, especialmente aos que pela fé pertencem à nossa própria família, ao Corpo Místico de Cristo.

Não vos comove que o Apóstolo João, já na velhice, empregue a maior parte de uma das suas epístolas em exortar-nos a manter uma conduta de acordo com essa doutrina divina? O amor que deve existir entre os cristãos nasce de Deus, que é Amor. Caríssimos, amemo-nos uns aosoutros, porque a caridadeprocede de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é Amor. Detém-se na caridade fraterna, pois por Cristo fomos convertidos em filhos de Deus. Considerai que amor nos manifestou o Pai em querer que fôssemos chamados filhos de Deus e que o sejamos na realidade.

E, enquanto fere energicamente as nossas consciências, para que se tornem mais sensíveis à graça divina, insiste em que recebemos uma prova maravilhosa do amor do Pai pelos homens: Nisto se manifestou a caridade de Deus para conosco: em que Deus enviou o seu Filho unigênito ao mundo, para que por Ele tenhamos a vida. O Senhor tomou a iniciativa, vindo ao nosso encontro. Deu-nos esse exemplo para que acorramos junto com Ele a servir os outros, para que - gosto de repeti-lo - ponhamos generosamente o nosso coração no chão, de modo que os outros pisem macio e se torne mais amável a sua luta. Devemos comportar-nos assim porque fomos feitos filhos do mesmo Pai, desse Pai que não duvidou em entregar-nos o seu Filho muito amado.

Com o nome de próximo - diz São Leão Magno -, não devemos considerar apenas os que se unem a nós pelos laços da amizade ou do parentesco, mas todos os homens, com quem temos uma comum natureza . Um só Criador nos fez, um só Criador nos deu a alma. Todos desfrutamos do mesmo céu e do mesmo ar, dos mesmos dias e das mesmas noites, e embora uns sejam bons e outros maus, uns justos e outros injustos, Deus, no entanto, é generoso e benigno com todos.

Os filhos de Deus forjam-se na prática desse mandamento novo, aprendem na Igreja a servir e não a ser servidos, e sentem-se com forças para amar a humanidade de um modo novo, em que todos perceberão o fruto da graça de Cristo. O nosso amor não se confunde com a atitude sentimental, nem com a simples camaradagem, nem com o propósito pouco claro de ajudar os outros para provarmos a nós mesmos que somos superiores. É conviver com o próximo, venerar - insisto - a imagem de Deus que há em cada homem, procurando que também ele a contemple, para que saiba dirigir-se a Cristo.

Universalidade da caridade significa, por isso, universalidade do apostolado; significa traduzirmos em obras e de verdade o grande empenho de Deus, que quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade.

Se devemos amar também os inimigos - refiro-me aos que nos incluem entre os seus inimigos; eu não me sinto inimigo de ninguém nem de nada -, temos de amar com mais razão os que simplesmente estão longe, os que nos são menos simpáticos, os que, pela sua língua, pela sua cultura ou educação, se parecem ao que há de mais oposto a ti e a mim.

De que amor se trata? A Sagrada Escritura fala-nos de dilectio - dileção -, para que se compreenda bem que não se refere apenas ao afeto sensível. Exprime antes uma determinação firme, da vontade. Dilectio deriva de electio, escolha. Eu acrescentaria que amar, em linguagem cristã, significa querer querer, decidir-se em Cristo a promover o bem das almas sem discriminações de gênero algum, conseguindo para elas, antes de mais nada, o que há de melhor: que conheçam Cristo, que se enamorem dEle.

O Senhor insta conosco: Portai-vos bem com os que vos aborrecem e orai pelos que vos perseguem e caluniam. Pode ser que não nos sintamos humanamente atraídos pelas pessoas que nos repeliriam, se delas nos aproximássemos. Mas Jesus exige que não lhes retribuamos o mal com o mal; que não desaproveitemos as ocasiões de servi-las com o coração, ainda que nos custe; que não deixemos nunca de tê-las presentes em nossas orações.

Essa dilectio, essa caridade, reveste-se de matizes mais íntimos quando se refere aos irmãos na fé, e especialmente aos que, por Deus assim o ter disposto, trabalham mais perto de nós: os pais, o marido ou a mulher, os filhos e os irmãos, os amigos e os colegas, os vizinhos. Se não existisse esse carinho, amor humano nobre e limpo, ordenado por Deus e nEle enraizado, não haveria caridade.

Gosto de repetir umas palavras que o Espírito Santo nos comunica através do profeta Isaías: Discite benefacere, aprendei a fazer o bem. Costumo aplicar este conselho aos diversos aspectos da nossa luta interior, porque a vida cristã nunca se pode dar por terminada, uma vez que o crescimento nas virtudes surge como conseqüência de um empenho efetivo e cotidiano.

Numa ocupação qualquer da sociedade, como é que aprendemos? Primeiro, examinamos o fim desejado e os meios necessários para atingi-lo. Depois, perseveramos repetidas vezes na utilização desses recursos, até criarmos um hábito, arraigado e firme. No momento em que aprendemos alguma coisa, descobrimos outras que ignorávamos e que constituem um estímulo para continuarmos esse trabalho sem nunca dizer que basta.

A caridade com o próximo é uma manifestação de amor a Deus. Por isso, não podemos estabelecer limite algum ao nosso esforço por melhorar nessa virtude. Com o Senhor, a única medida é amar sem medida. Por um lado, porque nunca chegaremos a agradecer bastante o que Ele fez por nós; por outro, porque o próprio amor de Deus pelas suas criaturas se revela assim: com excesso, sem cálculo, sem fronteiras.

No Sermão da Montanha, Jesus ensina o preceito divino da caridade a todos os que estão dispostos a abrir-lhe os ouvidos da alma. E, ao concluir, explica como resumo: Amai os vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar nada em troca, e será grande a vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é bom mesmo com os ingratos e os maus. Sede, pois, misericordiosos, como também vosso Pai é misericordioso.

A misericórdia não se detém numa estrita atitude de compaixão; a misericórdia identifica-se com a superabundância da caridade, que por sua vez arrasta consigo a superabundância da justiça. Misericórdia significa manter o coração em carne viva, humana e divinamente transido de um amor firme, sacrificado, generoso. Assim comenta São Paulo a caridade, no seu cântico a essa virtude: A caridade é paciente, é benigna; a caridade não é invejosa, não age precipitadamente, não se ensoberbece, não é ambiciosa, não busca os seus interesses, não se irrita, não pensa mal, não se alegra com a injustiça, mas compraz-se na verdade; tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo sofre.

Portanto, repito-vos com São Paulo: Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver caridade, sou como bronze que soa ou como címbalo que tine. E ainda que tivesse o dom da profecia e conhecesse todos os mistérios e toda a ciência, e tivesse toda a fé, a ponto de mudar os montes de um lado para outro, se não tiver caridade, nada sou. E ainda que distribuísse todos os meus bens para sustento dos pobres e entregasse o meu corpo para ser queimado, se não tiver caridade, nada disso me aproveita.

Perante estas palavras do Apóstolo das Gentes, há quem concorde com aqueles discípulos que, quando Nosso Senhor lhes anunciou o Sacramento da sua Carne e do seu Sangue, comentaram: Dura é esta doutrina, e quem a pode escutar? É dura, sim. Porque a caridade que o Apóstolo descreve não se limita à filantropia, ao humanitarismo ou à lógica comiseração pelo sofrimento alheio: exige o exercício da virtude teologal do amor a Deus e do amor, por Deus, aos outros. Por isso, a caridade nunca há de acabar, ao passo que as profecias passarão, e as línguas cessarão, e a ciência será abolida . Agora permanecem estas três virtudes: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior delas é a caridade.